quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Conto Puro

            Era Ângela a filha de um homem que não existia mais, nem na memória – fruto de uma noite regada à cachaça em excesso. Recôndita e inexoravelmente má desde a ignorância animal dos recém-nascidos, ou talvez sábia demais, causou a morte prematura de sua mãe. Herdou, de sua pobre progenitora, uma agulha de crochê. Acolhida por sua tia Madame, mui cedo tornou-se mulher – da vida, sempre fora.
            Tinha alma para os negócios, mas nem tanto para as finanças. Descobriu que o maior prejuízo dos que perdiam a dignidade (porque a deixavam escapar e punham a culpa num viajante com a barba por fazer) era a carência. Supri-lo, portanto, encurtava o caminho para o poder e valia muito mais do que a lei do mais forte. Percebeu que um ombro onde outros poderiam chorar era moeda de troca valiosíssima, e Ângela dispunha o seu às colegas como dispunha o resto do corpo a seus clientes.
            Sendo confidente de todas as mocinhas pouco virtuosas que com ela labutavam, não se surpreendeu quando Anne Louise – belíssima e imbecilíssima – confessou-lhe que esperava uma criança. A bem da verdade, não esperava: desesperava-se por livrar-se dela. Fleumática como de costume, Ângela resolveu o problema com muito prazer e sem nenhuma agressividade no manejo de sua única herança, embora Anne tenha sido acometida por uma febre que quase a levou ao túmulo dias mais tarde (mas antes a morte, mil vezes a morte!). Não lhe cobrou muito: meio vidro de um perfume falsificado pareceu-lhe suficiente. O pagamento foi simbólico: A jovem prostituta, na verdade, sentira-se pela primeira vez útil – arrancara das entranhas da outra uma erva daninha.
            Tão logo se espalhou a notícia (Lou não se pôde conter), novos pedidos desesperados surgiram. Solícita como lhe mandava a criação, Ângela atendia a todos, sempre grata pela oportunidade de cortar o mal pela raiz.
            Nem a sua fama de cirurgiã, todavia, poderia livrar-lhe de vender-se – e nem interessava a ela desistir da profissão que sempre exercera com muito gosto. Assim, em uma madrugada de gim nacional e corpetes de cetim, conheceu a sua desgraça. Não se deitou com ele naquele instante – estava ocupada – mas ao pousar o olhar na expressão mordaz e no corpo magro do cavalheiro, tomou-a uma euforia maior do que a causada pelo excesso da bebida ao qual já estava acostumada e, a despeito da loucura, sentiu-se distante do seu mundo de fantasia – alguma urgência desconhecida e real demais adensava-se dentro dela. Desejo, sim, mas não só desejo. Subia ao patíbulo, mas não foi capaz de notá-lo.
            Foi num entardecer cinza-claro que tornou a encontrar seu bem-amado – ele havia retornado àquele antro somente por ela. Do crepúsculo à aurora, nada fizeram além de, e exauridos de paixão, adormeceram abraçados enquanto os honestos acordavam.
Ângela despertou com um movimento inesperado de seu homem no sono. Contudo, toda a mágica da noite anterior desapareceu quando suas pálpebras se levantaram: Não encontrou no rosto dele as feições cruéis da primeira vez que o viu, mas os traços brandos de um menino adormecido. Aterrorizada pela visão daquilo que sempre lhe causara ojeriza, não hesitou ao alcançar sua preciosa agulha e enterrá-la no pescoço do amante, que tremeu e sangrou e arfou sem conseguir comovê-la até, finalmente, cair inerte – desta vez para sempre. Serena, sereníssima, ela dirigiu-se à janela. Caiu muda e morreu com três vigas de madeiras que lhe atravessaram o ventre, o semblante satisfeito de quem nem ao menos sentiu vertigens.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Toda vez que escuto algo dito brilhante, sinto vontade de gargalhar. Se ao menos eu fosse como os que confundem felicidade com euforia. Se ao menos eu fosse capaz de acreditar que as palavras traduzem pensamentos ao invés de escondê-los. Ou se pudesse fechar os olhos para a angústia vazia de quem não consegue compreender bem o mundo por mergulhar fundo demais nele. Não que fosse encontrar, a partir disso, alguma solução – aliás, cheguei a definir qual era o problema? O tempo não passa, eu passo pelo tempo e não sei caminhar em outra direção. Sinto-me como um rato enlouquecido que rói a própria cauda e se arrebenta contra as grades da ratoeira. Persigo o inatingível infatigavelmente enquanto tentam me convencer de que tudo de que preciso é um bom tóxico.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

            Não consigo mais parar para pensar no que deveria. Queria morrer uns tempos e voltar reparada. Aquela morte de acidente, em que a cabeça não é achada e se deteriora com a ação da natureza. O resto vai para o forno. Tudo muito bem higiênico.
            Fantasiar a morte denota um devaneio de grandeza, diria Freud. Não sei, li Freud meio por cima. Mas talvez seja verdade – estou me sentindo meio pequena. Como aqueles que se supõem incapazes de evoluir. Como quem encontra A Grande Conclusão (não há conclusões), como um niilista de boteco. Talvez seja porque perdi o imediato. Porque esteja vivendo só de passado e futuro. Vivendo em stand by.
            Vejo a lua da janela do meu quarto. Poderia ser romântico e bobo se você estivesse aqui. Ou quem sabe não estivéssemos nem um pouquinho interessados em ver a lua. Quem sabe? Quem sabe a minha mesquinhez não seja sonhar com você como uma adolescente, meu querido. Muito mais provável é que minha mania de negação tenha-me tornado tão petulante. E a minha mania de transgredir seja precursora de todos os meus conflitos, da vontade que tenho de lhe dizer o que não posso.  

domingo, 5 de dezembro de 2010

Esca(l)pe-lamento

          Eu queria abrir a sua cabeça e puxar a sua massa encefálica com uma agulha de crochê. Só porque pendo mesmo para a truculência. Nada pessoal.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

       Não quero reabilitar as imbecilidades românticas, não se trata disso. Porém, como tudo o que sou é derivado das minhas antíteses, digo que talvez eu não tenha perdido o coração, mas guardado-o bem protegido - o contrário jamais seria prudente. Às vezes, entretanto, esses lirismos baratos, essas cenas que parecem ter sido tiradas de um filme ruim, esses sonhos inverossímeis que insistem em ser rememorados (porque insistem) simplesmente se revelam como uma parte minha que não posso extirpar. Gostaria, talvez. Só que não posso. Vivo e temo a morte pois sei que ela está à espreita. Temo covardemente o julgamento alheio, e temo o mau uso da palavra, mas não posso deixar de escrever. Temo perder, sofrer, mas não posso deixar de sentir. 

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Do Otimismo

- Que bom, agora posso me atirar do abismo com a certeza de não me espatifar. Escaparei voando.

Das Conclusões

- Hoje acordei e percebi que estava morta.

Dos Golpes Baixos

- Eu queria te abortar, mas teu pai não deixou.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Considerações II

- Você sabe, chéri - acendeu um cigarro - não há como ser platônico depois de uma trepada homérica.

domingo, 28 de novembro de 2010

Considerações

- Se você for você mesma o tempo todo, ele jamais vai ter peito para cortejá-la.
- Interessante. Bem, eu não quero me envolver com um covarde.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Fragmento

Estranhíssimo: eu conseguia perdoá-la por ter um amante, meu pai também fora infiel no casamento e, mesmo que eu preferisse não saber de seus desvios, com medo da sensação de desamparo que eles me traziam, sabia que eles não haviam sido os primeiros e estavam longe de serem os últimos a romper com suas ditas obrigações maritais. Sabia também que a decisão de meu pai por uma separação era improvável, pois ele tinha exatamente tudo o que queria: uma mulher bela e facilmente dominável, cujos protestos podiam ser calados com jóias, e mais quatro ou cinco namoradinhas para distraírem-no com seus corpos jovens, risos graciosos e sua leviandade encantadora.
Era considerado um homem de bem, um bom profissional e ainda conseguia aparentar ter mais dinheiro do que efetivamente possuía. Já mamãe, sufocada por regras, tratada como uma criança incapaz ou como uma louca, pouco tinha a perder. Contudo, conhecendo-a como eu a conhecia, temia seu bovarismo ingênuo e onde ele culminaria: o último bem que lhe restava era a esperança, e eu desconfiava que, se esta morresse, ela também definharia.
Considerava injusta a peça que o destino pregara em ambos: Ele, por fazê-la acreditar que não passava de uma mulher delicada e eternamente romântica, sem discernimento da realidade, seria deixado por ela exatamente por isso. E ela, tardiamente sonhadora, incendiaria a vida imbecil que tivera sem saber como construir outra. Mimada como era, não tinha noção dos riscos que corria.
Era claro, portanto, que ela pagaria por seus erros, que estava fadada à decepção. O que eu não conseguia tolerar, mesmo, é que ela quisesse me arrastar junto para o lago de equívocos onde se afogava no raso – e que tivesse poder para isto, por mais idiota que fosse.
Pela primeira vez em muito tempo, pensei no futuro. Não consegui achar nenhuma promessa importante, nenhuma expectativa. Mas viver do meu jeito era um bom engano. Não queria ser como a minha mãe.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Refuto o passado
                        presente
Sem passado e sem presença
                        guardado
                        latente
Oscilo, oscilo
                        intensa
                        fremente
Nem sei se te sei
Ou se te crio

Se te desenho nos meus lençóis
                      máscara atroz,
                      será que te amei?



De ontem só lembro
Que estavas calado

 (Mas antes calado
            permanecesses!
            Antes morresses
            Em meu seio aninhado)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Projeto Vértebra - Uma série de colunas

             Em parceria com um amigo muito querido e competente (Francisco Mallmann, do http://www.strongconviction.blogspot.com/ ), dou início, hoje, a um novo blog, com propósito um pouco diferente deste. Continuarei a postar aqui, pois ambos são, de certa forma, complementares. Abaixo, um resumo de nosso projeto:

          
Não viemos para lhe contar onde lhe doem os ossos – supomos, ilustre (?) leitor, que você já o sabe. Não viemos para sustentar corpos sem espírito, para fazer a dignidade de qualquer bípede (antes pô-la em xeque). Viemos pelos pontos finais que em conjunto se tornam reticências, não de dúvida, mas de continuidade. Viemos pelas contradições que levam a conclusões. Procuraremos evitar os exageros românticos (para tais distrações aprazíveis, visitem os seguintes endereços: www.moezbert.blogspot.com / www.strongconviction.blogspot.com). Tampouco temos a finalidade de endireitar essa espinha tão torta que é a humanidade (a primeira bandeira que levantamos é a do combate ao autoengano). E não pretendemos seguir com regularidade a pernosticidade de nossa introdução (a empáfia não é exatamente causadora de empatia, embora se faça necessária num primeiro momento). A falta de esforço para obter simpatia inicial significa apenas que sabemos bem qual não é o nosso objetivo (embora seja uma conseqüência bem-vinda): Agradar. Isso declarado, podemos começar nossa descompromissada tarefa de protesto.

 Lucia M. Ghaendt-Möezbert e Francisco Mallmann

O Homem-Livro

           Acordou um dia prensado entre as páginas doze e treze de um exemplar antigo, como uma flor seca. Ao menos não era um inseto, pensou, enquanto notava tatuados em si trechos que não eram seus. Curioso o alento proporcionado pela impossibilidade de escape, pelo calor entre papel e papel – talvez o único aconchego que bastasse àquele homem triste. Acostumou-se cedo à sua nova condição e descobriu que não gostava de viver à margem.
            Tentou fazer de travesseiro um pê, de política, mas lhe pareceu tolice perder a riqueza que o cercava pelo encanto de noções mal-aplicadas. Tentou compreender a vastidão daqueles parágrafos que progrediam lentos e sábios, mas não foi capaz de acompanhá-los e, como Brás Cubas, não teve sucesso em seus projetos. Por acaso descobriu – vagando entre um aposto e outro – que todo homem é o homem todo, como bem versava Sartre, porém já não compreendia direito o que era ser humano (ou, quem sabe, houvesse parado ali justamente porque jamais aprendera o que se nasce sabendo). Pois a mesma riqueza que lhe abrira os olhos pôs-lhe uma venda, de forma que ele nunca visse, notasse, abstraísse a existência de um outro indivíduo completo, invalidando, assim, toda informação que obtivera.
            Quando, por mero acaso, abriram o livro justamente no capítulo em que ele se encontrava, assustou-se. Não reconheceu os olhos que percorriam lá de fora suas linhas. Considerou-os indecentes, ignóbeis. Os olhos de um apedeuta curioso, que certamente não era digno de folheá-lo. Mas, por haver adquirido algo de aventureiro, acabou resolvendo testar a companhia indesejada. Levou-a às páginas mais surpreendentes, observou suas notas de rodapé sem muita atenção, prendeu-a entre construções incompreensíveis e até se mostrou em branco.
            Só voltou a temer quando, inocentemente, resolveram sublinhá-lo. Aquilo era inadmissível! Decidiu desaparecer. Preferia morar no epílogo.

domingo, 21 de novembro de 2010

Um pouco de poesia e o aviso de que o blog está em reforma (:



             Procuro, quem sabe
             Perder o interrogativo ponto final
             Dos des(a)tinos

                         Como podes me querer bem
                                              se és tão mau?





segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Comentário



Pregam os anacrônicos anafroditas
Finjo escutar (se não houvesse mentira, não haveria arte)
E, covardias à parte,
Quando se encerra o falario
Meu branco no preto é púrpuro
Como a loucura que uma vez já lhes sorriu


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

             Sabia bem que não se resumiam a dois corpos suarentos. Sabia? Como era bom perceber que ele nunca pudera perdoar-lhe o gênero (e duvidava muito que algum dia houvesse tentado), ao menos enquanto o arrebatamento era tanto que nada restava a não ser fitar a tatuagem feia em suas costas, seus braços firmes que se esticavam em direção à cabeceira buscando um cigarro. E pensar que tudo começara por causa de um isqueiro. E pensar que dissera jamais. Por que tão quieta?, ele perguntava constantemente, já procurando novamente enlaçá-la, forçando sua perna entre as dela, ansioso, ávido. Ainda bem. Dessa forma, atinha-se muito pouco a buscar respostas para o silêncio. Bastava que ele fosse suprimido por gemidos e suspiros. Não que não se importasse. Pelo contrário. Beijava-lhe as cicatrizes cuja história desconhecia. Vou cuidar de você, minha linda. Perdidos no limite entre realidade e fantasia, abraçavam-se.
            Quanto às discussões? Não existiam. Ele preferia dizer que respeitava a opinião dela. Nunca se enfrentaram. Não valia a pena. Ela vituperava suas atitudes de pequeno burguês, sua vida social repleta de presenças desprezíveis, sua falta de espírito público, rejeitava seus valores comuns, mas não se retesava ao toque do antigo inimigo. Ao invés disso, entregava-se, abria-se, pedia, prendia-o em si contraindo as coxas e gozava com raiva porque não era capaz de meramente usá-lo. Absorta pela satisfação culposa de quem perde o orgulho, caía no vazio da quietude com a qual ele fingia se incomodar. Tornava-se, pouco a pouco, parte das posses que ele considerava essenciais. E ele despejava mais vinho nas taças, mais risos suaves em seu ouvido, mais, mais, tantas coisas mais. Possuía-a na palma das mãos, nos olhos e no bolso da calça, embora nem ao menos a conhecesse.
            Pelas razões que só um homem assim poderia compreender, sentiu, depois de passados alguns meses, que era tempo de visitar uma joalheria. Fê-lo com a tranqüilidade de quem prevê um retorno certo ao investimento, mas, como qualquer um faria num momento como aquele, não se esqueceu de se ajoelhar, de se exaltar. E ela, como qualquer outra (veja bem, como qualquer outra) reagiria, disse que sim, os olhos úmidos de surpresa.
            Na manhã seguinte, encontraram-na morta, esparramada na diagonal da cama, branca como a ira (sim, a ira), nua como uma noite sem estrelas. No estômago, além de doses letais de Zoloft e Daforin, um anel de brilhantes da H. Stern.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

            Disse-me, repleto de irônica eutimia, que o melhor tipo de homem se esgota no pior tipo de mulher. Isso muito casualmente, às oito da manhã, enquanto vestia-me de fumaça e sentia-se ultrajado por minhas pálpebras semicerradas de desprezo. Não era um desprezo destrutivo, apenas o aprazível exercício de ignorar a presença exacerbada e presunçosa de dias distantes.
            Quem foi que mentiu que você é o melhor tipo de homem, hein? Recitar aforismos como um papagaio repetindo atirei-o-pau-no-gato não faz de você um gênio. Os numerinhos que o entretêm naquele caos de escritório na Sete de Setembro também não traduzem superioridade intelectual. Mas não tenho a intenção de destruí-lo. Se você calasse a sua boca e transformasse a fúria do verbo que mora em seus lábios, quiçá pudéssemos nos despedir ainda tontos pelo êxtase, selando com olhares um tratado de paz. Você é fraco, eis a verdade. Não lhe basta ter sido meu amigo, amante, confidente, bem-amado e porto seguro. Nunca lhe bastou, e todo o seu carisma já me levou a crer que ser sua era tudo, tudo o que eu poderia desejar. Liberta de tais absurdos, contudo, escuto suas ofensas e encontro no seu rosto a evidência de que para você, mil vezes melhor ser odiado do que não despertar sentimento algum. Um milhão de vezes ser meu algoz, torturador, do que outro dos meus apaixonados que se misturam em imagens borradas. Ah, esses resmungos ríspidos que você solta para ver se ainda têm efeito. Se soubesse ao menos que a saudade de nossa história só pode ser mantida se guardarmos o melhor dela. Já não trilhamos o mesmo caminho. Tão distante estamos, aliás, que sonho como há muito não sonhava. E não é com você, ouviu? Perguntei enquanto via surgir suas rugas de raiva na testa, a expressão incrédula.
            Vamos. Eu o levo à porta. O quê? Não precisa? Tanto melhor. Tanto melhor. Você pegou o casaco em cima da cadeira. Levantei para limpar o cinzeiro. Queria dormir. O seu cheiro na cama. Dirigi-me ao sofá da sala e o esqueci.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Que sou, se estou
                                   Aqui
E não caibo, como bem disse um amigo
Sou uma linha,
           um monstro,
             um figo?
Hediondo artigo
Indefinido?
            O brilho do mundo
            Que se vai
            A vida, a vida!
            Que se esvai.
           
O sentimento inesperado
Que bebe o grito
Da surpresa?
            Presa na Roda
Gigante
Instante-adiante-amante
            Presa do vício
            Da rima mais pobre
            Roubando o suplício
            Do mau e do nobre

Sem culpa, sem nexo
Sem rosto e sem sexo
                                            
                        Tanta tinta e tanto tule!
                        Não há quem anule
                        Os disfarces do palco
                       
                        Somente eu vaio
                        Minha falta de ensaio
                        O peito que dói
                       
Vertigem e caio
Ah, truque tão velho:


Você, meu espelho




(fio de inspiração furtado de http://www.strongconviction.blogspot.com/. Recomendadíssimo!)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

            Chamavam o Adolfo de Galego e, por alguma razão, acho que o apelido soava de fato melhor que o nome. Tempão que não vejo Galego. Mudou-se para Portugal. Engraçado, é dessas criaturas cômicas, que não fazem questão nenhuma de ser inesquecíveis, que nos recordaremos com freqüência significativa. Galego gostava (e, imagino, ainda gosta) da vida boa, de sol e piscina (detestava areia), de morenas de 1,75m, de cerveja gelada e de pastel de feira. Descrevendo assim a figura, mal posso acreditar que tenha sido um grande conselheiro justamente na época em que eu tinha sede de minhas próprias lágrimas e esperava, sem a mínima vontade de ser feliz, a noite cheia de fumaça e vodca, planejando a minha própria insônia.
Era um advogado do amor. “Você vai sofrer, sim, mas acredite, corra atrás, existe melhor sofrimento do que o de paixão?”. Eu era jovem, ele enchia minha cabeça de besteiras e romantismo, emprestava o ombro para que eu chorasse as desilusões e me apresentava aos tipos mais imprestáveis, jurando que com aquele, com aquele daria tudo certo. No meu aniversário, presenteava-me com gérberas. Menos no último. No último, trouxe-me uma mudinha de melissa, para eu fazer chá. “Calmante”, ele me informou em tom zombeteiro. Naquele dia, nossa conversa não se restringiu aos meus namoricos. Discutimos sobre vida. Talvez tomado pela expectativa de outro mundo, ele me disse que “viver é ter todos os poros em estado constante de alerta”. Pausa. “Alerta feliz”, ele complementou com a voz embargada.
Não sei por que precisei de tantos meses para entender que o estado ao qual ele se referia se tratava da capacidade de encontrar alegria ao morder uma pêra madura, ao sair na varanda e roubar com os olhos a buganvília escandalosamente roxa em frente à casa da vizinha. Ou de sentir o contraste entre minha própria pele e o corpo de outro alguém. De fumar devagar (se for para morrer de prazer, que seja com lentidão, aproveitando cada minutinho). De ter momentos mais longos de inconsciência-consciente – se o futuro é conseqüência dos nossos atos, estamos perfeitamente integrados à montanha russa do destino. A atitude movida pela euforia ou pelo acaso vale tanto quanto aquela que foi ponderada. Aliás, devo meu insight óbvio a um respiro. Ao cheiro fresco da melissa que cresceu escapando pela janela da lavanderia, buscando o sol e levando junto minha vista espantada para o céu azul-cor-de-sonho-bom.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

            Não perdi os vocábulos, mas perdi a poesia. Sou o vazio. Basta-me um ingênuo para que eu volte acreditar no “sentimento do mundo”. Basta-me um presunçoso para que eu sinta-me tomada por uma ataraxia satírica. Sinto-me desprezivelmente sã. Nenhum louco digno do nome, supondo-se que a loucura seja o próprio excesso, procura um espelho que lhe traga a cura. Uma máscara substitui a outra, embora o significado de cada uma permaneça incógnito. Talvez tudo seja culpa das migalhas que espalhei pelo caminho. A fealdade de minha história é o lirismo que resta não a mim, mas aos que me lêem surpresos até que se enfastiem. Os ímpetos incontíveis morrem sem deixar rastros. Fui tão feliz que prefiro não lembrar. Fui tão miserável que é melhor esquecer. Lógica alguma atinge o âmago desta caneta. Lógica alguma atinge. Lógica. Se a poesia não houvesse sido perdida, entretanto, acredito que já estaria condenada. Sufocada com o “eu”. Sobraria apenas a fusão dos meus tantos nomes. Que é nada.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Antes que eu pronuncie
    Blasfêmias
        Santas ou
            Tartufarias de
                Ratoeiras
                    Agruras e ardores
                        Inconstantes, inconciliáveis
                            Afoga-me.
                              
                                   

                                   Mata, mata! Sufoca
                                    Esta leitura inexata!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Cantiga de ninar

Se te privei da dança
Da vida,
Minha criança,
Minha querida,
Dou-te o berço
Da linha
E o braço
Do verso
Que chora e te aninha

domingo, 24 de outubro de 2010

Matrioshka

           Em Berlim. Era lá que deveríamos ter terminado o nosso passeio, depois de visitarmos o tio, eu pensava tiritando por culpa do ar gélido de Pskov. Que ideia, esticar a aventura na Rússia como se estica a madrugada em uma padaria, comendo pão de queijo e café preto para curar a ressaca. Saudade do pão de queijo. Saudade do trinco enferrujado da porta da minha biblioteca. Que fazíamos ali, naquela ponte, cobertos por nossas lãs inúteis, cada um no seu mundo, meio juntos, mas nunca próximos? Quantas milhas me separavam da esperança que um dia eu tivera de, após uma longa caminhada, ter nas mãos os objetivos que encontraria no meio da estrada mesmo. Muitas milhas, milhas minhas, centímetros de essência escondida. Centímetros que se espalhavam pelas minhas bochechas de dúvida quando ouvi a resposta. Você parece uma daquelas bonequinhas russas. O quê? É, daquelas que guardam uma igualzinha dentro da outra.
            Silêncio. Matrioshkas. As bonequinhas. Sabe, se eu olhasse para dentro de mim, encontraria um fígado seminovo. E um qualquer, vendo de fora, imaginou tanto! Olhei para o rio congelado debaixo da ponte. Tirei os brincos, que incomodavam. Descascada. Recoloquei os brincos. Medo de não achar nada senão vazio dentro de madeira morta. Se eu fosse uma Matrioshka, queimar-me-ia. Frio, frio. Uma lufada de vento. Meu reflexo alvirróseo na fina camada de gelo. Pensei em Narciso. Não, eu não me afogaria por aquela imagem. Quem sabe, só para descobrir o que há por trás dela. Entretanto, tinho medo das especulações. “Não sou nada, nunca serei nada”. Fastio. Queria voltar para o hotel. Ânsia de escrever. Não sou nada, senão tudo o que sou à parte meu presente estático. Sorri. Com os pés bem fincados no chão, voava. Epifanias que não são dignas do nome. Outro pedaço meu. Traço de realidade imaginada. Vulgaridades, como a pele sem significado. O significado sou eu. O signo sou eu. Não eu-Lucia. Não eu-mulher. Eu, fração inteira do mundo. Eu-você. Eu-humano. Conjectura-se o nada. O nada se imagina. Nós. Criação.
            Encontrei um espetáculo. Encontrei-me naquele instante (para me perder de volta no segundo seguinte). Parágrafos e parágrafos não transfeririam as infinitas camadas que descobri. Impossível reconstituí-las, estão guardadas para outro pôr-do-sol-sem-sol na Rússia. Para outra valsa fantasiosa em minha cabeça. Para uma madrugada de choro. Para um sorriso. Para o último cigarro, que precede o túmulo. Por enquanto, vivo dramática. Mais extasiada do que apática. Quando as bonecas de madeira perderem a alma, queimem-nas para que elas se transformem em calor. Por enquanto, nem o fogo nem a neve pode contê-las.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Outra carta velha

            Queridíssima:
            Ontem, a sua mãe me ligou. Sim, sei que você já sabe. Ela me disse que eu não deveria levar a filhinha de dezessete anos dela para o mau caminho. Pensei em lembrá-la de que eu tenho dezesseis. Concluí, entretanto, que isso soaria como uma acusação. Ou como a confirmação de que acredito no mau caminho. Pergunto-me sobre o que vocês conversaram quando ela descobriu. Aliás, descobriu mesmo? Não importa. Sei que isso não altera nada entre nós. Você continua e continuará me buscando, mesmo que inconscientemente, cada vez que passar em frente a um bar com cheiro de pecado para tomar um uísque duplo. Como na noite em que nos conhecemos. Oh, não, não pense que a subestimo ou que me considere interessante demais para ser esquecida. Mas você sempre foi um espelho de minhas próprias vontades. E ainda permeia, insidiosa, meus pensamentos mais alegres.
            Lamentável que as melhores respostas só me venham à cabeça horas depois. Se o telefone tocasse novamente e eu ouvisse a voz da dona Leila, diria a ela que não se preocupasse – que nascemos para amantes, e não para namoradas. Será que ela teria uma síncope nervosa que a liquidasse de uma vez por todas? Eu me vestiria de rubro em seu enterro. Só para ver se você me desculpava. Aposto que sim. Já disse que você fica bonita depois de chorar? Com as bochechas quentes e os lábios úmidos. Linda, linda. À parte a minha afronesia sobre o fim de sua progenitora, sinto-me sinceramente disposta a provocar suas lágrimas. Só para secá-las. Nem que seja com a língua. Ou para vê-la quase desidratar, convulsiva. Para vê-la sucumbir a mim. Seria capaz de lhe dizer que quero que você vá à merda, sua ordinária, só para ganhar a beleza do seu pranto. E depois pedir: Ah, perdoe-me, de uma vez por todas, deite aqui no meu colo para ganhar um cafuné. Talvez você seja a perfeição em forma de mulher, me dá o seu olhar de cordeirinha e resiste a cada uma das dores que eu lhe inflijo e que tanto me comprazem. Sim, você continua e continuará me buscando – senão nos bares, ao menos perto do bebedouro da sala de artes, onde nos amassávamos escondidas.
            Agora, com licença, que quero me contradizer: Estou em processo de recuperação. Juro. Tenho lido os poetas. Engolido os poetas. Tornei-me uma romântica incurável. E você, querida, transformou-se em versos mais bonitos que essa carta. Versos que nunca lerá. Não quero que descubra ser não minha Julieta eterna ou minha Marília de uma noite só, mas a mulher que me inspira a cada noite singular, com o perdão do pleonasmo, constantemente e pouco a pouco. Sim, meu bem, já prevejo a sua fraqueza. Continuará me buscando, mas em outro alguém. Minha vingança foi traçada. Saberá ter sido somente a feliz amante de uma sádica. E enquanto você evanesce, sugada pela mais abjeta das tradições, eu escreverei nossa história para perdê-la de vez. Quiçá assim eu consiga novamente despertar no coração de uma nova Julieta, Marília, Beatriz, Dulcinéia e Charlotte mais do que apenas a gentil piedade em reconhecimento ao esforço, ou a submissão infantil, mas a paixão que avassala. A paixão que avassala e que se perpetua somente pelo abandono.
            Lucia.

domingo, 17 de outubro de 2010

Que venhas doido e doído
Doer comigo
Queimando em azul a centelha
Chama a insustentável chama
Nossos nomes
Nossas fomes
            Infames
Que venha tua boca à minha orelha
Sem pronunciar promessa
(Cada gesto meu ou teu confessa
Espera e pavor do amanhã)
Que esqueçamos, só um pouco
            - Embriagados nos braços um do outro -
Saber a paixão tão curta e vã
E mesmo sem delírios de amor
            Que venhas, querido. Por favor.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

            Estávamos no sofá da sala de tevê, eu com a cabeça em seu colo, tão dedicada a representar Julieta que minha Lady Macbeth se recolheu em algum lugar dentro de mim como se não existisse mais. Ele passava a mão nos meus cabelos, eu sentia uma preguiça boa. Por um lado, gostava que ele me tratasse como uma bonequinha. Já não me lembrava da última vez que um homem olhara para mim como se eu valesse à pena. Pensei no que aconteceria com nossa rotina a partir de agora. Andaríamos de mãos dadas pelo shopping, cantarolaríamos músicas bobinhas no carro, a caminho de casa, e dividiríamos um pote de Häagen-Dazs assistindo a um DVD. Ele me beijaria lentamente, me olharia com ternura (ternura, meu Deus!), afinal, aquele seria o tipo de relacionamento em que se pensa mais em sentimento, e menos em sedução. Não era o que eu estava acostumada, mas caretice para mim era novidade, e decidi arriscar. Sim, eu arriscaria. Permitiria-me até adormecer naquele colo...
            - Clara...
            - Sim?
            - Eu acho que te amo. Não, não é verdade. Eu tenho certeza. Eu te amo.
            Abri os olhos. Ele dissera mesmo aquilo? Precisava pensar rápido.
            -...
            Droga, não sabia pensar rápido. Com cara de quem acabou de acordar, percorri o seu rosto com as costas da mão, cheia de afeto. Aquilo deveria bastar, por enquanto. Suspirei e voltei a cerrar as pálpebras. Merde. Se não estivesse tão envolvida naquele teatro, levantaria, daria pulos de desespero e gritos de horror. Eu já ouvira aquela frase antes, especialmente seguida de juras de suicídio em caso de abandono. Tudo bobagem, é claro, e a exaltação romântica me trouxera a certeza de que meu interlocutor cometera um equívoco: tratava-se de paixão, não de amor. Contudo, as palavras de André haviam sido ditas com uma serenidade que não deixava dúvidas.
            Lembrei-me rapidamente do que ele conhecia sobre mim. Filho do melhor amigo do meu pai, sabia que eu tinha uma habilidade culinária incrível, que adorava Chanel (eu e sua mãe tínhamos como único assunto a moda), que sonhava em conhecer o mundo. Acredito que já percebera também a minha capacidade retórica, mas nem imaginava a minha opinião sobre a Família, o Casamento e o tal do Amor.
            É claro que eu não me orgulhava de meu passado. Mas também não me arrependia. Amor, amor, amor! Ora essa! Senti raiva, primeiro. Depois, tristeza. Doía saber que ele me idealizava, que não era por mim aquele sentimento que eu não admitia. Será que era esse amor capaz de me curar? Difícil, eu não me considerava digna dele. Será que eu seria poderia, por André, me transformar na mulher amada? A mulher amada, todavia, parecia-me muito tola.
            Eis a verdade: meus machucados não me doíam. Eu havia mudado à custa deles. Nunca quis uma cara-metade. Gostava de ser assim, meio incompleta, até deformada, surreal. Encontrava-me, cheia de angústia, obrigada a enxergar que não se ama uma mulher que não precisa de ninguém – elas são quase psicopatas. Se André era bom demais para mim, eu já não me importava em ser ruim.
            Silenciei, insegura no primeiro instante. Depois, aguardei impaciente até que chegasse a hora de nos despedirmos.
            Mudei o número do meu celular, voltei a fumar (havia parado desde o nosso primeiro beijo) e “caí doente” durante todos os dias em que se realizaram coquetéis de trabalho de papai. La vie est passionante, mais l’amour? Pas pour moi.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Resumo da ópera

Curiosíssimo o meu fado
De masoquista alegria:
Sonhar com apaixonados
Que laureiam atrás de Sophia

sábado, 9 de outubro de 2010

Recópia de alucinações deliberadas

            Pergunto a qualquer amigo, a qualquer passante, como este gostaria de morrer. Primeiro, recebo uma expressão de horror, seguida de um comentário sobre o tempo, sobre a alma e demais tolices e, por fim, diante de certa insistência, ouço que meu interlocutor gostaria de morrer "bem velhinho, dormindo, de preferência, com o barulho do mar". Haja fraqueza. 
            Penso sobre o meu próprio fim em tais circunstâncias. Imagino uma senhora muito feia comentar com sua sobrinha que "morreu a vizinha, Dona Lucia, aquela senhorinha simpática, que estava sempre a preparar deliciosas broinhas de milho e erva-doce". Imagino meu cadáver de papel amassado, mais alvo do que o corpo jovem que possuo hoje, talvez pelos ralos cabelos brancos, ainda que a pele esteja salpicada de manchas, de carcinomas basocelulares e o diabo a quatro. Imagino minha irmã e meus sobrinhos a lamentar a perda por cerca de duas semanas, para depois seguirem suas vidas como se eu nunca houvesse existido - nada mais natural. E meus amores, estes também já estão há muito a sete palmos abaixo da terra. Desagrada-me a ideia de ninguém se lembrar de minhas pernas, agora inertes e judiadas por varizes horríveis. Desagrada-me mais ainda que, ao adquirir o que chama de experiência, eu tenha aprendido a resistir aos chamados mais lânguidos e, assim, lutado com toda a força de minha velha fragilidade, cheia de artroses contra o beijo sedutor e inexorável da morte. Apavoro-me ao pensar que esmoreceria não só a minha juventude, mas também as minhas palavras ácidas haveriam sido maturadas, adoçadas pela vida. 
            Como gostaria de morrer? Ora, não se pode fazer exigências por demais para um acontecimento assim. Se pudesse escolher, contudo, optaria por... Quem sabe, optaria por decidir, eu mesma, a hora da partida. Juntaria dinheiro apenas para gastá-lo. Não deixaria um tostão para ninguém: Não pretendo ter filhos, minha própria avó uma vez mencionou que, às crianças, deve-se ensinar apenas modos e amor à vida. Modos? Sei dizer “por gentileza e sorrir sem a mínima vontade, mas é somente pelos anos de experiência. Amor ao que quer que seja, bem, já caí doente por causa deste e, como acabou por tornar meu coração imprestável, não tive outra escolha senão a de jogá-lo fora. Sob tal ótica, colocar crianças no mundo seria um erro que não gostaria de me permitir. Voltando à partida: Talvez eu me vestisse com um Armani e me atirasse do décimo quinto andar de um hotel. Quem sabe, apenas esquecesse de acender o fogão quando fosse assar meu derradeiro bolo de chocolate, asfixiando-me com gás e deixando como única herança uma grande porção de massa crua.
            Penso em outra possibilidade: um assassinato. Não falo das balas perdidas ou dos homicídios causados pela resistência a um assalto na madrugada. Fantasio um crime em grande estilo, movido por razões políticas ou passionais. O motivo geral é simples: sou um perigo, sei demais, trapaceio demais, não posso mais existir. Deleito-me ao pensar que haveria, neste caso, infligido a ira de alguém ao ponto em que este se arriscaria a destruir a própria vida junto com a minha, que consideraria melhor os possíveis anos atrás das grades do que o meu respirar. Mil vezes ser odiada do que não despertar sentimento nenhum. Quem sabe, meu hipotético executor misturasse veneno para ratos à uma tacinha de Limoncello, considerando-se muito esperto, sem sonhar que desconfio de seu plano e que sorvo o licor com mais prazer desta forma. Será que ele me assistiria desfalecer enquanto ainda me sorria? Ou passaria por seus olhos uma sombra de terror? Quem sabe, ainda, eu fosse ferida por um tiro à queima-roupa, por algum incauto, inexperiente, que acertaria um órgão vital, porém de forma que eu tivesse alguns minutos para rir, esvaindo-me em sangue, e tresloucada perguntar: "Por quê? Por quê? Por quê?", ao que ele tentaria, cheio de cólera, me responder, mas ao encontrar meus olhos de desprezo, calaria-se para sempre, certo de que não havia necessidade de explicações. 
            Já partindo para o plano de utopia, a história de meu fim terminaria com meu corpo queimado embaixo de um viaduto ou atirado em um rio tão poluído que não seria possível encontrá-lo mesmo após buscas incansáveis (que provavelmente não aconteceriam). Se eu tivesse ainda mais sorte, meu querido desafeto estaria tão fora de si que cruelmente me picaria em pedaços e me jogaria fora, ou me espalharia por cantinhos na rua para assustar mendigos, ou talvez fritasse um pedacinho da minha coxa para comer no jantar acompanhado de um bom pinot noir - se assim fosse, não haveria o risco de que minhas ordens para que cremassem meus restos fossem ignoradas e que eu fosse vestida de rendas cor-de-salmão, pérolas e cabelos moldados com baby-liss, submetida à farsa de um velório, de lágrimas sem sal que não ardem nos olhos, e, por fim, enterrada para sempre como o cada bom inútil que dá seu último suspiro.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Poesia nula ou Memória

Não sei dias, não sei noites
Sei somente
A menina deitada de All Star na cama
(Sonho lençol vida mundo – tudo é mesmo lama)
Divagando – amor, amigo?
Entre agulhas, cigarros
E suco com gérmen de trigo
O mundo é um quarto
Um corpo (o meu)
Ontem, uma era e todo o passado
            Um dia guardado
                        De riso e de nuvem
                                   De culpa sem culpa
                                               Seu nome é Ninguém
                                                           Ninguém, outro passo
                                                                       (A linha termina, eu me desfaço)
                                                                                              Sem fio de lembrança
                                                                                                          Morri tantas vezes!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

            A título de curiosidade: Estou escrevendo um livro (aliás, estou odiando e revisando e remoendo um livro já escrito) e o trecho que segue é o primeiro parágrafo do meu projeto. Aviso: O pedaço, obviamente, está relacionado à continuação do texto, entretanto o livro é um romance e não uma reunião de filosofias de boteco, ao contrário do que a introdução poderia indicar.

           A vida insossa nos oferece a tentação de um néctar mortal, do qual tendemos a beber com voracidade até cairmos, inertes, sobre o prato da longevidade. Ou então, dispensamos o doce, o embriagante, e engolimos em pequenos bocados a ração triste da qual dispomos, até que ela se exaura junto com a nossa irrelevância. Envenenar-se é tão essencial quanto nutrir-se, pois o prazer de viver é o nosso cianureto disfarçado de vinho. Matar-se contidamente, então, é a chave da plenitude humana. Equilíbrio. Eis o desafio.

           (Continua. Ou não)

domingo, 3 de outubro de 2010

Quase carta

          Quando o presente, que nasce do passado, quer assassinar o ontem, dizem que estamos maduros. Ser maduro, então, é atear fogo em toda a nossa razão de ser? Afinal, nossos objetivos mudam conforme desviamos das pedras em nosso caminho. Perdoe as antigas Lucias, se lhe convier, mas não tente fazer-me dizer que elas nunca existiram. Venha cá e olhe para mim, pela primeira vez sem máscaras. Sabe, querido, isto não é sobre nós dois. Não somos uma unidade, embora eu lhe queira muito. Talvez minha honestidade o ofenda: Não posso ser o que você quer que eu seja. Cada palavra sua, branda ou ríspida, traz a mesma pergunta: "O que é amor para ela?". Cale suas interrogações, a resposta está aqui. Leia-me, não fujo, não temo. Deixe que eu o abrace, que eu o conforte. Fique. Ou vá. O hoje é a certeza de que posso sobreviver a tudo. Até a você.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Ah, Amsterdã das tulipas
Maios menos bonitas
Rainhas subjugadas
Da primavera noturna
E rubras como os olhos injetados
Que caíram da ponte.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Haikai para os imaginativos (2)

Ainda sobre o figo
Novo, aberto, vivo sente
Fome de semente

sábado, 25 de setembro de 2010

              O céu é cinza-violeta manchado de ocre por um sol que grita atrás das nuvens, sufocado. Do lado de cá, a atmosfera pesa. Todo o centro cheira a tempestade e pastel. Ah! O zunzum da cidade ao cair da tarde: Jovens ambiciosos usando ternos baratos, senhoras muito religiosas pregando no ponto de ônibus, prostitutas que pisam firme na calçada traiçoeira e movem os quadris com agilidade. Zunzum abafado por Chico Buarque no meu MPmuito. Tragicomédia com exímio elenco de bailarinos desajeitados. Perdoem-me o excesso (difícil descrever o previsível sem que o leitor se enfastie), mas o óbvio redesenhado pelo presente e pelo futuro perde os traços de um passado distante, e tenho de procurar algo que torne o momento algo mais que a ansiedade da calmaria.
            Volto-me para meus planos, a fila que não se move é uma dádiva para minha sede criativa. Não imagino um novo poema, mas aquilo que realmente há de mudar minha existência: Juntar um dinheiro aqui e ali, uma viagem - que triste é a vida com os cobres contados. Ainda bem que existem os pequenos amores que nos distraem - será que ligo para o Eduardo, chamo-o para um jantar e dê no que der? Alguém me cutuca: A fila andou (penso bem: Andou mesmo). A ilusão de cinco passos é desmanchada por um problema no caixa. Olho para fora. Vai mesmo chover. E eu precisava passar no mercado. Que Helena não apareça em minha casa hoje. Como voltar às minhas afronesias belíssimas ante a minha realidade ainda mais imbecil?
            A catedral do outro lado da praça me faz notar que continuo na mesma Cidade Sorriso bipolar de sempre. Enquanto amaldiçoo o agora, chega à frente da igreja, tímida em seus andrajos, uma senhora franzina. Volta o rosto para cima. Como eu, sabe que vem água. Procura um lugar mais coberto, mas cada toldo já possui “dono”. Que lhe resta? Carrega alguns papelões. Anda em círculos como um cão que estuda o território. Para. Uma idéia genial. Genial! A alguns metros dali, uma lata de lixo. Estica seu paupérrimo leito parcialmente sob ela. Quando o céu desabar, sua cabeça permanecerá quase seca.
            Pago minhas contas. Caminho rapidamente. Passo pela mendiga. Pingos esparsos e grossos caem. Batem no metal, ressoam. Molham os farrapos que recobrem a pele curtida. Cada vez mais constantes, as gotas. Geladas, impiedosas. Fujo, embora elas sejam minhas irmãs. Corro, corro e alcanço um táxi: Desperdício necessário. Não me volto para olhar. Sei que a velha continua lá. Dou o endereço para o motorista. Partimos, é claro. Ou você havia conjecturado outro final?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Eu sou o tempo de que outro alguém? Futuro
Projeto do aqui, falha, fio de voz
Esmorecendo a cada novo escuro
Ou queimando a certeza de um após

Estive quem, segundo longo atrás?
Espio por sobre o ombro – Onde? Onde? Onde?
Se ontem mal ondulava minha paz
Agora agoura, foge, mente, esconde!

Espaço de infinito infinitivo
Para encontrar-te temo e sobrevivo
Víscera ou vácuo, caco de universo

No âmago meu, teu, céu de centro etéreo
Centelha o nada, estrela-mãe estéril
Cuspindo-nos o tudo todo ao inverso

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

            O péssimo hábito de entrar discussões sem solução e debater com idiotas fez com que eu reconsiderasse a minha promessa de evitar escrever textos sem enredo (que parecem apenas incitar polêmica). É irresistível, tenho de me defender, com o perdão do lugar-comum: A igualdade entre os sexos, nos dias atuais, não passa de mera ilusão. 
            Os conformistas considerarão a afirmação absurda, afinal, a geração que vive hoje veio após a (assim dita) emancipação que possibilitou às mulheres a independência financeira e a autonomia nos relacionamentos, entre outros clichês repetidos à exaustão. Todavia, o passado está impregnado no presente de forma oculta (ou não), e nossa herança cultural, acumulada desde o período Clássico, é extensa.
            Tomando, por exemplo, o pensamento aristotélico, verifica-se que a mulher foi considerada um homem mal-acabado durante toda a Antiguidade. Resquícios desta tese são claríssimos também nas produções do século XX, sendo reforçada pela psicanálise de Freud, ao declarar inexorável a “inveja do pênis”. Com um pouco mais de atenção, observa-se que os mesmos pensadores (homens) os quais se aventuraram a questionar convenções, resumem a mulher aos conceitos naturalistas, puramente anatômicos: A mulher é um ser marcado para a possessão.
            Outro velho lugar-comum é a tendência geral ao “grande temor” da fraqueza, da paixão que entra em conflito com a razão. Os homens sonham, cobiçam, imaginam o sexo das mulheres. Temem-no, portanto. Sabendo que a “posse” do corpo alheio os aniquila por si só, e não pretendendo potencializar os riscos de insucesso, os homens criaram (e criam) inúmeros recursos para garantir a subserviência feminina e a eterna dominação sexo-intelectual.
            A despeito da repressão, as inverdades ditadas durante tanto tempo não passaram despercebidas aos olhos de mulheres inteligentes. “Não nascemos mulher, tornamo-nos mulher”, diz Beauvoir. O rompimento com os conceitos deterministas que serviram de molde para a organização social de quase todo o mundo até a década de 60 foi, sim, um avanço imensurável em relação aos pequenos passos dados até então na busca da liberdade. Como de praxe, entretanto, a má interpretação das palavras de excelentes autoras pôs muito a perder.
            O feminismo teve efeito limitado, ao queimar sutiãs e agir como se fosse impossível o exercício da liberdade a menos que as mulheres se transformassem nos homens a quem declarava ojeriza. Contudo, menos ainda fizeram as que aproveitaram as “licenças” recém-adquiridas para multiplicar o uso da sedução como arma ou moeda de troca na conquista de seus interesses (tudo dentro do preceito da igualdade).
            Ironicamente, foi neste momento em que projeto de igualdade desmoronou, pois se acirrou a guerra dos sexos. Favorecidos ainda são os homens, que não tem de optar entre dignidade e prazer, vaidade e reconhecimento.
            Por que insistir em “fracionar” a mulher? Seriam elas tão assustadoras sob a forma de um indivíduo completo?
            A indiferenciação é um drama, porque em geral não existe e, quando existe, ambos os lados saem perdedores. Não se admite que todos os gêneros, diferentes como são, possam ter o mesmo valor e os mesmos direitos, preservando suas próprias características. Ao contrário disto, prefere-se a disputa e ignora-se que homens e mulheres são complementares: A trégua só será possível quando sexo e filosofia não trouxerem segregação, mas aliem-se na busca de gozo e criação.

domingo, 19 de setembro de 2010

Boca falou...

- Eu acredito na forca
- Ah, é mesmo?
- Claro
  Desde que não seja eu o
               
                 E
                 n
               f o r
            ca     d...

sábado, 18 de setembro de 2010

Mania estranha, invejar os versos meus:
Precisa-se de dúvidas e lágrimas
Para escrever a vida em bons troqueus
Riscar dor, riso e engano em brancas páginas

E quantas frustrações em tinta encerro!
De fato, todo bem é um empecilho
A real beleza da arte mora no erro
No passo em falso e na ameaça de exílio

Tantas maldades líricas e vis!
Premeditados crimes, heresia
Trejeitos inconstantes de uma atriz

Somente o desespero traz poesia
Atenta: Cada letra está sangrando
Martiralgoz até no canto brando...

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

             Na penumbra cotidiana de uma terça-feira à noite ouço o som da TV do vizinho. Quero levantar e fumar, mas não vou, meu cabelo está molhado e vai ficar com um cheiro terrível se eu o fizer. Meus olhos ardem. Lentamente, vinda sabe-se lá de onde, a angústia me absorve (angústia, esta palavra tão démodé, não encontro outra...), eu bocejo, embora não tenha a intenção de dormir. Que estranho, estou viva. E a consciência me faz querer fugir dela própria. Percebo meu peso sobre o colchão velho, minha respiração me aterroriza. Encolho-me como um feto adulto, débil, desejando retornar ao útero da mãe que em pouco tempo hei de perder.
            Fecho os e escuto profecias nefandas escritas em olhos por detrás de lentes que refletem a luz branca de uma clínica. Se eu pudesse rezar... É possível que a religião, tão dogmática, possa vencer o não menos dogmático cientificismo? Não posso, não quero me apegar a nada. E a agarro-me ao travesseiro, imagino um soluçar dolorido, que direito tenho eu de sofrer? Preparo-me para o luto, como sou insensível! Esqueço os cabelos, alcanço o meu Charm e vou para a varanda.
            Acendo o cigarro muito tranquila, mas é só por um momento. Trago rápido. Não consigo livrar minha mente das metáforas ou vôos poéticos. Será que trago a vida, também, depressa demais? Egoísta. Gulosa. Quem sabe até má. Só que não é a mim que chama a morte, pelo menos não hoje. A poesia existe para os vivos. Quem já não respira, já não respira. Eu solto a fumaça num suspiro.
            Preciso me distrair. Fazer as unhas, visitar a Flávia em Cascavel, alguém que me faça feliz para sempre pelo próximo mês e meio. Brûlée, a gata, mia de dentro da lavanderia. Largo a bituca no canteirinho mesmo. Escrevo. Duas, três linhas. Quero engolir o Aurélio e achar palavras rebuscadas que não me exponham tanto. Desisto. A chata da Brûlée continua com seus protestos. Vou ver o que é. Abro a porta e ela escapa para o sofá da sala, aninhando-se na almofada. Deixo-a lá. De volta ao quarto. Meu celular vibra na cabeceira. Uma mensagem. Leio. Babaca. Penso em ligar para casa. Oscilo. Cedo e disco o número. Minha mãe atende. Desligo e vou dormir.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Se eu escrevesse para a Marie-Claire

Tudo bem, queridos leitores, pegaram-me no flagra. Confesso: Posso ser bem fútil também. Fuzilem-me. Mas antes, leiam.



Duas pequenas listas:

Cinco coisas que não se deve exigir de um homem


1- Que ele seja rico

A não ser que você também seja. O dinheiro é uma algema. Não faça de namoro profissão, pois é um investimento arriscadíssimo, as dívidas criadas são enormes. E a conta sempre chega.

2- Que ele tenha o Q.I. de um gênio

Você vai querer matá-lo a golpes de machadinha quando ele a corrigir. E de que adianta o seu eleito ser um exímio matemático, gramático, geógrafo, se não fizer nada de útil com esse conhecimento todo além de se envaidecer?

3- Que ele seja lindo

Fale a verdade: Você nunca fez dieta? Nunca tomou remédio para acne? Não tem celulite? A beleza está nos detalhes. E nos olhos de quem vê. Quem nunca conheceu um feio-bonito?

4- Que ele seja um monge

Você está estressada porque não deu tempo de fazer escova, está quatro quilos acima do peso e vai ficar menstruada. Aí, devido a tais tragédias, anuncia que não vai mais ao show que vocês tinham combinado de assistir juntos há dois meses. É claro que só o que ele pode fazer é dizer que “Tudo bem, claro, minha linda, meu amor”. Capisce?




5- Que ele ature seus sobrinhos, que diga que a ama todos os dias, não se esqueça do aniversário da sua bisavó e nunca pule as preliminares.

É simples: Quando o amor é óbvio demais, se o seu “casinho” simplesmente se esquece de si e faz to-das as suas vontades, bem, não é a você que ele ama. Ele a idealiza, põe você num pedestal. E aí, fodeu: A gente não gosta de quem se coloca abaixo. E, mesmo que gostássemos, um belo dia ele descobriria que aquela princesa estava mais para ogra (bem mais).




Cinco coisas que é prudente exigir de um homem:


1- Que ele tenha dinheiro e não seja sovina

Afinal, imagina-se que você também tenha o seu. Direitos iguais. Agora, pedir cinqüenta centavos para pagar a metade da cocada comprada na praia é um balde de água fria. O mesmo vale para quando um dos dois for entrar na fila do cinema e o outro for pegar lugar no restaurante, porque o shopping está cheiíssimo. Quem for para a bilheteria paga e ponto final.

2- Que ele seja inteligente e minimamente engajado.

Não é necessário que ele tenha lido Foucault, mas que tenha ao menos ouvido falar. Que saiba que “berinjela” não se escreve com “g”. Que tenha pendor para alguma coisa, ou melhor, que já tenha descoberto um (porque todo mundo tem). E, se ele falar que não gosta de política, já que ‘essas paradas’ não alteram em nada a vida dele, au revoir.

3- Que ele seja limpinho

Dispensa explicações.

4- Que não ouse ficar “putinho” sem dar explicações, e que jamais a agrida.

Pois para exigir algo de um homem, é necessário que ele seja um homem, e não um moleque mimado. E bater, só a pedidos.

5- Que ele tenha timing

Porque é sempre bom receber um telefonema inesperado. Ou quando ele passa a mão na sua perna enquanto dirige, com a cara mais séria do mundo. E não é nada mau um pouco de suspense. Tem graça saber onde ele está e o que está fazendo a cada minuto do dia? Tenha dó.

domingo, 12 de setembro de 2010

Eu-te-amos, a “bença”, as anedotas da infância
O vinho quente e barato (tim-tim, tim-tim!)
Desce traiçoeiro pela faringe travada: Ânsia.
Ébrios reclamam ter perdido o latim
(Que nunca tiveram) Com os filhos ingratos, e fazem-no rindo
Culpam por tudo o destino, as circunstâncias, a má sorte
                     - Em quantas horas o circo será findo?
                     - Sei lá, passa a garrafa: Família é de morte.

sábado, 11 de setembro de 2010

Dia plúmbeo e beligerante
Céu cinza rubro de sangue
Entre corpos muy feridos
- Em meio a estilhaçados vidros,
Patriotas em dor absortos -
Salvaram-se vários mortos.

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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Abrindo o Baú

 (Escrita antes de viajar, jamais enviada) 

  Curitiba, 23 de agosto de 2009

  Queridos Papai e Mamãe:


  Ignorem qualquer surpresa - o que lhes apresento aqui são, na realidade, os sentimentos de uma estranha. Tenho urgência de esclarecer, de uma vez por todas, que há muito já não me ligam a vocês o dinheiro ou as chantagens emocionais. Não sou ingrata, mas estou certa de que sei o que é melhor para mim, porque ao menos conheço minhas confusões. Vocês não podem predizer a mulher que serei - nem ao menos sabem a menina que fui!
  Cresci acreditando que o grande objetivo da minha existência era fazê-los felizes e isto significava - vocês nunca esconderam - ser a mais bonita, a mais inteligente, a mais educada da família, do clube, da escola e, se possível, do mundo. Não foi difícil durante a infância (todas as crianças são marionetes) e, quando me deparei com o impulso juvenil de abraçar o mundo com as pernas, questionar e transgredir, tive o cuidado de escondê-lo. Era a mais louca da turma do mal, mas às três estava em casa sóbria, no domingo usava vestidos, ajudava mamãe a fazer o almoço e passava a tarde estudando, lembram?
  Acusam-me de ser egoísta, só que não sabem (e nunca saberão), que, por solidariedade a vocês, chorei mortes sem que desconfiassem e acordei cedo para fazer compressas de camomila nos olhos. E quando voltei de viagem e papai me disse que eu estava "um planeta", recordam-se? Bastavam três quilos para que eu retornasse aos meus quarenta e sete de sempre, mas fiz melhor do que isto: dobrei a quantidade de cocaína e em duas semanas perdi seis (em um mês e meio, foram doze), vocês ficaram orgulhosíssimos e eu, um ano sem menstruar - mas que importa o detalhe?
  Entretanto, também é necessário elogiá-los: Aprendi bem cedo que não existe almoço grátis. Thanks to that, não consigo me sentir bem quando alguém segura meu braço com certa força na hora de atravessar uma rua - vai saber o que o desgraçado pedirá em troca -, prova irrefutável de que vocês conseguiram criar uma pessoa deveras independente, um feito digno de aplausos.
  Tirar nota dez em biologia e saber segurar minha flûte de champagne enquanto sorria cortesmente para todos os seus amigos (pais de família muito cavalheiros, que tentaram me levar para a cama inúmeras vezes) eram habilidades essenciais que adquiri com algum esforço, no entanto, pouco era o valor dos meus sonhos (não que eu tenha deixado de buscá-los, pelo contrário).
  Não pretendo fazer uma série de acusações, aliás, não faço aqui acusação alguma: Continuo violentamente existencialista e tenho a consciência de que todas as vezes que me atirei do precipício o fiz por que quis. Contudo, seguindo a mesma linha de raciocínio, sei também que escalei de volta à superfície sozinha, após ter me estatelado no chão. Sempre fui precoce, mas somente as irresponsabilidades que cometi puderam me fazer madura, e não suas ambíguas teorias.
  Uma história engraçada: No ponto mais conflituoso da minha adolescência, namorando o garoto que vocês julgavam adequado, pensei sobre o quão fácil seria ter a vida que vocês queriam para mim, tão habituada estava a pedir licença para ir à toalete, dar um telefonema e voltar com a expressão mais inocente possível. Afortunadamente, descobri que minha sede de liberdade não tolera frustrações bovaristas e tenho certeza de que preferiria morrer virgem, se virgem eu fosse, a somente pensar em dividir o mesmo teto que aquele bobalhão.
  É decepcionante pensar que, depois de passados dois terços do seu tempo na terra, ainda dêem tanto valor às aparências. A afirmação pode soar como uma inversão de papéis, mas me parece fútil demais o seu júbilo ao ouvir alguém dizer que sou linda e seu desgosto quando digo que vou cortar o cabelo. A beleza não é eterna, estática ou única, e tudo ao nosso redor é evidência disto.
  Recuso-me a ficar presa às suas ambições mesquinhas. Não importa se passei no vestibular, no concurso, meu desempenho no trabalho ou na faculdade: Quero mais do que saber, quero aprender, ensinar e construir. A contemplação não me satisfaz, o mundo é vasto e tenho muito a produzir.
  Poderia escrever páginas e páginas sobre o que almejo, mas só o que vocês precisam perceber é que não tenho mais a intenção de esquecer meus desejos em nome de... do que, mesmo?
  Não sou riquíssima, todavia não preciso de um centavo seu. Às vezes sinto-me só, mas prefiro a solidão às companhias que me destroem. Se vocês acertaram nas intenções (há controvérsias), erraram nas atitudes. Sou mais forte e poderosa do que demonstro. Amo vocês, só que não estou disposta a me sufocar por uma moral rasa e sem fundamentação, por ideais que não são meus e nem pela Família (assim mesmo, com letra maiúscula). Que eu quebre a cara para que o tempo os prove certos, mas agora é hora de partir por alguns meses.


  Lucia

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Com o perdão do prosaísmo

Hoje senti teu cheiro
De cigarro
Na minha blusa.

(Acho que não era meu cigarro,
Ainda que dividíssemos
O mesmo Carlton Crema.)

Fosse outrora
Não o notaria
Tão...                 ridutassom

Apaixonados (?)

Estávamos.

(Alors

- P'ra molhar minha pena
Em seus lirismos baratos:
"Com as graças do céu" -

Se o percebi
Ele - você - não é mesmo
Mais meu)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Haikai para os imaginativos

Centro róseo e oblíquo
Esconde o suave veludo
(dulcíssimo figo)

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Perdi os contornos guardados
Na imensidão do Jamais
Do mar triste de chamados
Que me afoga e me desfaz

Ai, se eu quisesse querer
Os raios pálidos de amor
Prolongando o anoitecer
Ou meu sorriso anterior

Se eu trocasse o úmido pranto
Pelo vapor dum suspiro...
Esqueço, pouco me encanto
Já não espero, mas deliro...

Basta o nada? Nada basta
Minha apatia é só cinismo
É o tudo que me arrasta
Do (quase) anseio para o abismo

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Carta a um mau amante

  Curitiba, 21 de maio de 2010

  Caríssimo V.,


  Não se encha de vaidade pois lhe escrevo, não tome esta carta por um sinal de afeto. Se dirijo algumas linhas a você, é somente por que se fazem necessários alguns esclarecimentos.
  Antes de mais nada, um pedido: não me chame mais de “minha querida”, não sou querida e muito menos sua. Aliás, preciso lhe dizer que pouco me comovem seus ciúmes.Você não é meu dono, recuso-me a passar pelas partes ruins de um relacionamento sério sem nunca termos tido um. Você protesta, diz que não entende minhas atitudes, mas é simples: Conheceu-me de um jeito, gostou de mim daquele jeito e, agora (que ironia!), quer que eu mude. Quer que eu pare de fumar, que não use jeans rasgados, que conheça a sua mãe. Compreendo: Quis crer no que alardeiam sobre as mulheres da minha idade (tão influenciáveis!) e se esqueceu de um detalhe: Sou nova, não trouxa.
  Não diga que me ama, não seja leviano com as palavras, não faça perguntas tolas, não seja pretensioso: Eu nunca vou me apaixonar por você.
  Há algum tempo, dizia que eu dava bons conselhos. Por gentileza, trate de aceitar os seguintes: Procure uma moça bem carente, que acredite no grande amor – dla ficará satisfeitíssima com um gentleman possessivo. Outra dica: Esqueça o Fahrenheit – depois dos “enta”, não fica bem usar perfumes velhos.
  Lamento lhe informar, mas você pouco entende do prazer feminino. Sabia que ele começa pelos ouvidos? Pois bem, ultimamente, sua voz tem me dado ânsias. Não é só: Suas perversões são comuns, sei de cor o caminho que você percorre antes de chegar ao que interessa e detesto seu olhar interrogativo no final. Quer mesmo saber? Você não foi o meu melhor. Mas valeram as tentativas.
  Para não falar que sou injusta, obrigada pelos lírios enviados na semana passada.
  Um último aviso: Não é prudente sair por aí dizendo que sou sua namorada. Você não é o homem da minha vida. É “um dos”. Ou melhor, foi. Tudo tem prazo de validade, e nosso affair era extremamente perecível. Faça o favor de sumir, antes que as lembranças de incômodo se tornem mais intensas do que as de alegria.

  Meus mais ou menos sinceros votos de felicidade

  Lucia

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Tornar logo sem cor minha face
Sem traço de agonia ou arrependimento
Pintada no vazio do último enlace
Eis o sonho covarde que alimento

Sinto o peso da morte em minha cama
Sinto as garras do nada no meu leito
Sufocando o futuro ela me chama
Pede que eu seja só sua e cedo aceito

Sem horror, sem paixão, digo-lhe: "Sim,
Acabe para sempre com meus dias
Pouco importa o retrato do meu fim."

A autora das piores vilanias
Que piada! Pusilânime desfeita:
Do veneno há de ser noiva perfeita.

domingo, 29 de agosto de 2010

Talvez a apatia à qual você se refere o faça melhor do que eu, sempre imersa em fúria. Afinal, se é capaz de contemplar a tristeza sem pronunciá-la, não se trata de conformismo ou desgosto vão, mas da capacidade de enxergar a raison d’être das coisas além da sua própria vida, embora você insista em falsear individualismo. O que vemos de nós é uma imagem borrada pelos traços de quem gostaríamos de ser. Você falou que gostaria de ser um pessimista. Mas será que você quer, honestamente, desistir de mudar o mundo? Se fez meu olho encher d’água na frente desta tela fria, chéri, pode mais do que imagina. Se suas decepções guardadas não o transformaram no retrato da maldade, como acontece com todo mundo, seu dom não se resume à palavra. Confesse: Seu grande tesouro (tantas vezes negado) é a esperança.

sábado, 28 de agosto de 2010

Passatempo Dadaísta

Porque sábado é dia de preguiça:


Desviando seguintes nocivos mártires

Jamais confirmados pescoços
Instalara-se mínima
Cifrada Pandora
Capricho.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

         Eutímico, porém notavelmente misantropo, era Professor. Difícil crer que ocupasse mesmo a função de mestre: Falava pouco e baixo, fazia críticas cáusticas em versos mudos e alternavam-se em seu semblante expressões muito sutis de vontade e de desprezo. Talvez pudesse explicar detalhadamente as leis da Física a seus entediados alunos, porém jamais poderia ser tomado como exemplo de homem valoroso.
        Ella, alva, jovem, ambiciosa, mas nunca tola, em tudo diferia de suas colegas que disfarçavam com seus rostos angelicais as coxas úmidas. Não tinha cabelos compridos, namoradinhos com acne ou tops de lycra. Pouco assistia à televisão. Vituperava qualquer tipo de alienação, todavia se permitia os prazeres do vinho, dos chocolates, dos cigarros, do sexo, dos livros. Tinha Pessoa na cama todas as noites já havia dois anos, e arrastava o amante em seu coração durante o dia inteiro. “Não sou nada; Nunca serei nada (...)”.
        Poderiam, Ella e Professor, ter se cruzado na saída de uma peça qualquer. Quem sabe, comprando café no Mercado Municipal. E não é improvável que se esbarrassem saindo de um filme de baixo orçamento em cartaz no shopping Crystal. Só que, em qualquer um destes casos, não haveriam percebido a presença um do outro.
        Se houvessem se conhecido em uma classe de Professor, Ella o detestaria: o julgaria pedante e desagradável. Mas conheceram-se, por coincidência, em uma sala de aula: Ambos alunos.
        Logo descobriram a escrita como um hábito em comum. Passaram a trocar prosa e poesia. Cedo, ficaram mais próximos do que julgaria adequado o restante da turma (um verdadeiro absurdo, ele, trinta anos na cara, ela, dezessete recém-completados).
       Discutiam acerca do comportamento humano em geral. Da loucura. Da gula, da ira, da soberba, da inveja, da avareza, da preguiça e, principalmente, da luxúria. Impassíveis falavam de desejo, mesmo inflamados por ele. Ella já notara os olhares de Professor e nada fizera para evitá-los (pelo contrário).
       Cada vez mais acalorados eram seus debates. Arte. Filosofia. Literatura. Sim, a boa leitura leva à reflexão e, não raro, à reflexão leva a relativização da moral, ocasionando pequenos “desvios”. Sim. Às vezes, o resultado do existencialismo consiste em corpos nus debaixo dum lençol. Se o pó retornava ao pó, pensaram, não havia tempo para reprimir a felicidade. E foi com a bênção de todos os filósofos e poetas que aqueles céticos se deitaram juntos pela primeira vez.
        Não fosse a fleuma dos dois transviados, quem sabe houvessem tentado levar alguns beijos para além do boudoir, contudo, parecendo-lhes insensato provocar escândalo, mantiveram uma amizade decorosa. Apenas sob o véu dum anoitecer lento, quando ninguém se ocuparia em procurar o paradeiro de dois improváveis amantes, era que se uniam as bocas e os vocábulos, os gemidos e os versos, as peles e as sinestesias, a excitação e a euforia criativa.
         “(...)Todos os sonhos do mundo”, era agora a linha preferida de Ella, quando parecia nascer o sonho da história sem fim. A história na qual cada vírgula era um suspiro, uma ausência lamentada e querida (sempre necessária para enganar as ampulhetas), cada interrogação, uma surpresa, uma palma fria sobre um seio quente, pernas entrelaçadas e dormentes de afeto. Todas as reticências, um prelúdio das exclamações de gozo...
         O ponto final, entretanto, fez-se necessário por um motivo banal. Ella arranjou um namorado, do qual não gostava muito, e nem o tempo todo. Estavam juntos há poucos meses quando ela decidiu que, embora, “amor” não fosse a palavra certa, algo a avisava que não era possível continuar com Professor. Talvez as convenções.
        Professor não chorou e não pediu que ela ficasse. Encontraram-se uma última vez. Ele falou que, se aquilo era uma despedida, era a mais bela de todas. “We’ll always have Babette”, disse, fazendo referência a Casablanca e ao cafezinho da Aliança Francesa. Ainda afirmou que sentia muito, e que prometia deixá-la cometer seus próprios erros, se assim Ella desejasse.
        Não cumpriu a promessa: Um dia, anos mais tarde, fez um telefonema internacional, para salvá-la de outra paixão desmedida.