segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O Homem-Livro

           Acordou um dia prensado entre as páginas doze e treze de um exemplar antigo, como uma flor seca. Ao menos não era um inseto, pensou, enquanto notava tatuados em si trechos que não eram seus. Curioso o alento proporcionado pela impossibilidade de escape, pelo calor entre papel e papel – talvez o único aconchego que bastasse àquele homem triste. Acostumou-se cedo à sua nova condição e descobriu que não gostava de viver à margem.
            Tentou fazer de travesseiro um pê, de política, mas lhe pareceu tolice perder a riqueza que o cercava pelo encanto de noções mal-aplicadas. Tentou compreender a vastidão daqueles parágrafos que progrediam lentos e sábios, mas não foi capaz de acompanhá-los e, como Brás Cubas, não teve sucesso em seus projetos. Por acaso descobriu – vagando entre um aposto e outro – que todo homem é o homem todo, como bem versava Sartre, porém já não compreendia direito o que era ser humano (ou, quem sabe, houvesse parado ali justamente porque jamais aprendera o que se nasce sabendo). Pois a mesma riqueza que lhe abrira os olhos pôs-lhe uma venda, de forma que ele nunca visse, notasse, abstraísse a existência de um outro indivíduo completo, invalidando, assim, toda informação que obtivera.
            Quando, por mero acaso, abriram o livro justamente no capítulo em que ele se encontrava, assustou-se. Não reconheceu os olhos que percorriam lá de fora suas linhas. Considerou-os indecentes, ignóbeis. Os olhos de um apedeuta curioso, que certamente não era digno de folheá-lo. Mas, por haver adquirido algo de aventureiro, acabou resolvendo testar a companhia indesejada. Levou-a às páginas mais surpreendentes, observou suas notas de rodapé sem muita atenção, prendeu-a entre construções incompreensíveis e até se mostrou em branco.
            Só voltou a temer quando, inocentemente, resolveram sublinhá-lo. Aquilo era inadmissível! Decidiu desaparecer. Preferia morar no epílogo.

3 comentários:

  1. Sensacional. De ser livro, ninguém se livra.

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  2. Também não gosto de comparações e concordo que "escrevemos, às vezes, para firmar uma personalidade própria". Mas como foi inevitável lá no meu blog, com Gullar, digo que não consegui não associar esse aqui à Kafka e sua "A Metamorfose". Parabéns!

    Abraços o/

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  3. Fantástico! Esplendoroso! Até difícil procurar adjetivos, pensei até em ressucitar José de Alencar para adjetivar esse texto.

    E me recordo de Virgínia Woolf quando diz "Cada um tem o seu passado fechado em si, tal como um livro que se conhece de cor, livro de que os amigos apenas levam o título."

    Um abraço.

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