segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Outra carta velha

            Queridíssima:
            Ontem, a sua mãe me ligou. Sim, sei que você já sabe. Ela me disse que eu não deveria levar a filhinha de dezessete anos dela para o mau caminho. Pensei em lembrá-la de que eu tenho dezesseis. Concluí, entretanto, que isso soaria como uma acusação. Ou como a confirmação de que acredito no mau caminho. Pergunto-me sobre o que vocês conversaram quando ela descobriu. Aliás, descobriu mesmo? Não importa. Sei que isso não altera nada entre nós. Você continua e continuará me buscando, mesmo que inconscientemente, cada vez que passar em frente a um bar com cheiro de pecado para tomar um uísque duplo. Como na noite em que nos conhecemos. Oh, não, não pense que a subestimo ou que me considere interessante demais para ser esquecida. Mas você sempre foi um espelho de minhas próprias vontades. E ainda permeia, insidiosa, meus pensamentos mais alegres.
            Lamentável que as melhores respostas só me venham à cabeça horas depois. Se o telefone tocasse novamente e eu ouvisse a voz da dona Leila, diria a ela que não se preocupasse – que nascemos para amantes, e não para namoradas. Será que ela teria uma síncope nervosa que a liquidasse de uma vez por todas? Eu me vestiria de rubro em seu enterro. Só para ver se você me desculpava. Aposto que sim. Já disse que você fica bonita depois de chorar? Com as bochechas quentes e os lábios úmidos. Linda, linda. À parte a minha afronesia sobre o fim de sua progenitora, sinto-me sinceramente disposta a provocar suas lágrimas. Só para secá-las. Nem que seja com a língua. Ou para vê-la quase desidratar, convulsiva. Para vê-la sucumbir a mim. Seria capaz de lhe dizer que quero que você vá à merda, sua ordinária, só para ganhar a beleza do seu pranto. E depois pedir: Ah, perdoe-me, de uma vez por todas, deite aqui no meu colo para ganhar um cafuné. Talvez você seja a perfeição em forma de mulher, me dá o seu olhar de cordeirinha e resiste a cada uma das dores que eu lhe inflijo e que tanto me comprazem. Sim, você continua e continuará me buscando – senão nos bares, ao menos perto do bebedouro da sala de artes, onde nos amassávamos escondidas.
            Agora, com licença, que quero me contradizer: Estou em processo de recuperação. Juro. Tenho lido os poetas. Engolido os poetas. Tornei-me uma romântica incurável. E você, querida, transformou-se em versos mais bonitos que essa carta. Versos que nunca lerá. Não quero que descubra ser não minha Julieta eterna ou minha Marília de uma noite só, mas a mulher que me inspira a cada noite singular, com o perdão do pleonasmo, constantemente e pouco a pouco. Sim, meu bem, já prevejo a sua fraqueza. Continuará me buscando, mas em outro alguém. Minha vingança foi traçada. Saberá ter sido somente a feliz amante de uma sádica. E enquanto você evanesce, sugada pela mais abjeta das tradições, eu escreverei nossa história para perdê-la de vez. Quiçá assim eu consiga novamente despertar no coração de uma nova Julieta, Marília, Beatriz, Dulcinéia e Charlotte mais do que apenas a gentil piedade em reconhecimento ao esforço, ou a submissão infantil, mas a paixão que avassala. A paixão que avassala e que se perpetua somente pelo abandono.
            Lucia.

5 comentários:

  1. não sei o que você espera dos comentários em seus textos, ou se espera algo... dizendo isso posso parecer evasivo, mas não! evasão também é arte! rsrs
    é uma impressão que tenho, por sentir que sou medíocre demais.

    bem, aquele blog não existe mais, e não tratava só de sonetos; era uma alegoria da minha personalidade, e toda personalidade é uma alegoria, como tal, findou em um carnaval desconhecido. Desculpe "culpá-la" por isso, mas, sinceramente, isso ocorreu depois de passar pela primeira vez por teu blog, eu já andava cansado e precisava de um floco de luz, deparei com uma explosão! Talvez por levar a sério demais certas coisas...

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  2. Lucia,

    Intensa a sua carta. Isso é lindo!Você é capaz de amar, de se revoltar, de se embreagar... Gosto dessa sua intensidade, dessa descoberta, dessa entrega. Não precisou usar palavras rebuscadas para passar o que sentia, porém passou da melhor forma possível!

    parabéns meu bem. Me chame quando for se embreagar!

    beijos

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  3. Gosto de sítios onde as palavras são bem tratadas, como é o caso. Vou seguir com todo o gosto.

    AC

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