terça-feira, 31 de agosto de 2010

Tornar logo sem cor minha face
Sem traço de agonia ou arrependimento
Pintada no vazio do último enlace
Eis o sonho covarde que alimento

Sinto o peso da morte em minha cama
Sinto as garras do nada no meu leito
Sufocando o futuro ela me chama
Pede que eu seja só sua e cedo aceito

Sem horror, sem paixão, digo-lhe: "Sim,
Acabe para sempre com meus dias
Pouco importa o retrato do meu fim."

A autora das piores vilanias
Que piada! Pusilânime desfeita:
Do veneno há de ser noiva perfeita.

domingo, 29 de agosto de 2010

Talvez a apatia à qual você se refere o faça melhor do que eu, sempre imersa em fúria. Afinal, se é capaz de contemplar a tristeza sem pronunciá-la, não se trata de conformismo ou desgosto vão, mas da capacidade de enxergar a raison d’être das coisas além da sua própria vida, embora você insista em falsear individualismo. O que vemos de nós é uma imagem borrada pelos traços de quem gostaríamos de ser. Você falou que gostaria de ser um pessimista. Mas será que você quer, honestamente, desistir de mudar o mundo? Se fez meu olho encher d’água na frente desta tela fria, chéri, pode mais do que imagina. Se suas decepções guardadas não o transformaram no retrato da maldade, como acontece com todo mundo, seu dom não se resume à palavra. Confesse: Seu grande tesouro (tantas vezes negado) é a esperança.

sábado, 28 de agosto de 2010

Passatempo Dadaísta

Porque sábado é dia de preguiça:


Desviando seguintes nocivos mártires

Jamais confirmados pescoços
Instalara-se mínima
Cifrada Pandora
Capricho.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

         Eutímico, porém notavelmente misantropo, era Professor. Difícil crer que ocupasse mesmo a função de mestre: Falava pouco e baixo, fazia críticas cáusticas em versos mudos e alternavam-se em seu semblante expressões muito sutis de vontade e de desprezo. Talvez pudesse explicar detalhadamente as leis da Física a seus entediados alunos, porém jamais poderia ser tomado como exemplo de homem valoroso.
        Ella, alva, jovem, ambiciosa, mas nunca tola, em tudo diferia de suas colegas que disfarçavam com seus rostos angelicais as coxas úmidas. Não tinha cabelos compridos, namoradinhos com acne ou tops de lycra. Pouco assistia à televisão. Vituperava qualquer tipo de alienação, todavia se permitia os prazeres do vinho, dos chocolates, dos cigarros, do sexo, dos livros. Tinha Pessoa na cama todas as noites já havia dois anos, e arrastava o amante em seu coração durante o dia inteiro. “Não sou nada; Nunca serei nada (...)”.
        Poderiam, Ella e Professor, ter se cruzado na saída de uma peça qualquer. Quem sabe, comprando café no Mercado Municipal. E não é improvável que se esbarrassem saindo de um filme de baixo orçamento em cartaz no shopping Crystal. Só que, em qualquer um destes casos, não haveriam percebido a presença um do outro.
        Se houvessem se conhecido em uma classe de Professor, Ella o detestaria: o julgaria pedante e desagradável. Mas conheceram-se, por coincidência, em uma sala de aula: Ambos alunos.
        Logo descobriram a escrita como um hábito em comum. Passaram a trocar prosa e poesia. Cedo, ficaram mais próximos do que julgaria adequado o restante da turma (um verdadeiro absurdo, ele, trinta anos na cara, ela, dezessete recém-completados).
       Discutiam acerca do comportamento humano em geral. Da loucura. Da gula, da ira, da soberba, da inveja, da avareza, da preguiça e, principalmente, da luxúria. Impassíveis falavam de desejo, mesmo inflamados por ele. Ella já notara os olhares de Professor e nada fizera para evitá-los (pelo contrário).
       Cada vez mais acalorados eram seus debates. Arte. Filosofia. Literatura. Sim, a boa leitura leva à reflexão e, não raro, à reflexão leva a relativização da moral, ocasionando pequenos “desvios”. Sim. Às vezes, o resultado do existencialismo consiste em corpos nus debaixo dum lençol. Se o pó retornava ao pó, pensaram, não havia tempo para reprimir a felicidade. E foi com a bênção de todos os filósofos e poetas que aqueles céticos se deitaram juntos pela primeira vez.
        Não fosse a fleuma dos dois transviados, quem sabe houvessem tentado levar alguns beijos para além do boudoir, contudo, parecendo-lhes insensato provocar escândalo, mantiveram uma amizade decorosa. Apenas sob o véu dum anoitecer lento, quando ninguém se ocuparia em procurar o paradeiro de dois improváveis amantes, era que se uniam as bocas e os vocábulos, os gemidos e os versos, as peles e as sinestesias, a excitação e a euforia criativa.
         “(...)Todos os sonhos do mundo”, era agora a linha preferida de Ella, quando parecia nascer o sonho da história sem fim. A história na qual cada vírgula era um suspiro, uma ausência lamentada e querida (sempre necessária para enganar as ampulhetas), cada interrogação, uma surpresa, uma palma fria sobre um seio quente, pernas entrelaçadas e dormentes de afeto. Todas as reticências, um prelúdio das exclamações de gozo...
         O ponto final, entretanto, fez-se necessário por um motivo banal. Ella arranjou um namorado, do qual não gostava muito, e nem o tempo todo. Estavam juntos há poucos meses quando ela decidiu que, embora, “amor” não fosse a palavra certa, algo a avisava que não era possível continuar com Professor. Talvez as convenções.
        Professor não chorou e não pediu que ela ficasse. Encontraram-se uma última vez. Ele falou que, se aquilo era uma despedida, era a mais bela de todas. “We’ll always have Babette”, disse, fazendo referência a Casablanca e ao cafezinho da Aliança Francesa. Ainda afirmou que sentia muito, e que prometia deixá-la cometer seus próprios erros, se assim Ella desejasse.
        Não cumpriu a promessa: Um dia, anos mais tarde, fez um telefonema internacional, para salvá-la de outra paixão desmedida.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

             Três dias após ter desembarcado naquele sonho de cidade, ouvi uma impolidez pela primeira vez: “Cazzo!”, você xingou o menino de pés descalços que corria e fez com que você derrubasse pincéis e tintas no chão. Eu ri, você se voltou com um intuito de despejar sobre mim uma série de impropérios, mas, sabe-se lá por que motivo, acabou por perguntar, muito simpático, se eu era dali. Respondi que não, em inglês, um pouco desconfiada da sua expressão de grande conquistador. Você pediu que eu esperasse, largou o material todo em um beco esquisito, olhou-me de cima a baixo e classificou: “Belissima”
            Foram tantos elogios e tantas risadas escandalosas durante o fim da tarde que, quando voltei à pensione, esqueci de ligar para minha mãe e escrevi três páginas à la Julieta: As estrelas, as águas, os barulhos da rua, tudo parecia fazer parte de um grande espetáculo cujo tema central era o nosso encontro.
           Em um piscar de olhos, passaram-se duas semanas. Encontráramo-nos todos os dias, mas era hora de partir. Você pediu que eu não fosse. Presenteou-me com um anel antigo. Convidou-me para morar em seu apartamento. Fiquei.
          Dos meus retratos feitos por você, consigo olhar apenas para um, o primeiro, meu rosto cheio de expectativas. Quanto outros tenho guardados! Você rabiscava sem que eu posasse: Fumando na janela. Olhando-me no espelho. Na cozinha. Lendo. No chuveiro. Nua. Vestida. Enrolada na toalha, no lençol.
         “Ti amo, principessa”, você declarava. Seus amigos me chamavam de “A menina do Franco” e, a certo ponto, eu não sabia quem era a tal menina. Ou quem eu era. Estranhíssimo, não reconhecer o próprio corpo, escutar seus próprios gritos dos confins de um lugar imaginário.
         Limoncello, grappa e, depois, vodca e absinto mesmo (que as italianices já não importavam), consumíamos bebidas fortes em quantidades industriais, potencializávamos a vontade e a angústia.
        Aquela conversa – vaga – sobre casamento acordou meu instinto de fuga. Um dia, um amigo ligou do Brasil (confesso que ele fora, há poucos anos, mais do que isto, mas que importava?), você atendeu. Ele me perguntou se você estava escutando, disse que eu não precisava de um amor que me sufocasse, que aliás, não precisava de amor nenhum, que não havia precisado nem mesmo dele! “Melhor em paz em Ventania do que agoniada em Veneza. Curitiba a espera, minha criança”, ele falou antes de desligar.
       “Se você me trair, eu te mato”, você ameaçou. E acrescentou, em lágrimas, quando fiz as malas: “Se você me deixar, eu me mato”. Confesso: desejei que fosse verdade. Mas não era, ainda bem..
       Uma semana depois, em casa, chorei o fim pela primeira vez. A manhã era cinzenta, e a dor, tão grande que parecia física. Dor de crescer, diagnostiquei.
        Ah, com o perdão do clichê e da pieguice: pobre de quem sucumbiu a um amor sanguessuga. E pobre de mim, que sobrevivi ao seu.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vencida pelo código não-verbal de segregação do corpo discente de qualquer Universidade (para a sua desilusão, um bando de pirralhos incautos que aparentavam nunca haver saído do jardim de infância), Ludmilla passava o intervalo com os pés bem fincados na área destina aos artistas, homossexuais e esquerdistas, embora não compartilhasse de todos os ideais pregados por eles.


Justificava-se a covardia vil: Quando tentara transitar pelo outro lado, ouvira das bocas cobertas por mãos de quem se ajoelha para pedir perdão por maus pensamentos:

- Maluca.

- Pobre?

- Libertina!

Girara os calcanhares para identificar seus acusadores e encontrara os trinta rostos mais limpos deste mundo.

Voltou para o lugar de onde jamais deveria ter saído.

Era inexorável a separação dos santos e hereges. Seguiu, como de hábito, a guerra fria. Com um pouco de esforço, tornou-se fácil tolerar aqueles tolinhos poderosos. À exceção de um.

Muitíssimo bem adaptado aos “ex lege” e às “data venia”, argumentativo e bem-relacionado, Tiago era seu inferno. Demoliam-se mutuamente durante aulas polêmicas, mas não conversavam fora destas circunstâncias. Chegavam ambos atrasados todos os dias – ele, os cabelos curtos ainda molhados, ela, após sair de um ônibus lotado, com cachos secos e tenebrosos.

Talvez Ludmilla o invejasse um pouco, mesmo que não se dispusesse a admitir. Provavelmente, o sentimento era recíproco: Diante daquela visionária, desbocada e liberal, ele considerava-se acorrentado. Ela julgava imperdoável sua mania de tocar os primeiros acordes de Smells Like Teen Spirit, metido em seus pulôveres caros, e de citar trechos de Platão e Kant como se fosse o primeiro a descobri-los.

Em um sábado à noite, ambos incluídos dentro de um pequeno grupo improvisado, viram-se obrigados a apelar para a diplomacia. Ele foi mais bem-sucedido.

Na segunda-feira, dialogando com Fabrício, colega de língua impiedosa, Ludmilla inquiriu:

- Ele falou de mim, não foi?

- Foi.

- Falou, mesmo? O quê?

- Que você é charmosa falando com o cigarro jogado no canto da boca, com jeito de atriz de filme francês.

- Ah, é? Espero que ele não pense que vou virar come dele por causa disso.

- Não. Ele tem medo de você.

- É bom que tenha!

- Pensando bem, talvez não tenha mais. Aí vem ele. Shiu.

Tiago entrou confiante em território inimigo. Parou em frente a ela, que franziu a testa. Ele sorriu.

- Você tem fogo?

Ela ponderou. Sua expressão abrandou-se. Cedeu e tirou o isqueiro do bolso.

- Tome, seu dândi.

Ele gargalhou esdruxulamente. Ela não se conteve e o acompanhou.



Uma risada é a melhor forma de se começar uma amizade (e de acabar com uma também, mas não sejamos pessimistas hoje, Oscar).

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

- Pare quieto!
- Eu sou você.
- Não.
- Sim.
- Vá embora que eu quero dormir.
- Você só dorme quando eu deixar.
- Deixa?
- Não.
- Cadê seu rosto?
- Aqui, no seu. Este ricto irônico, viu?
- Os olhos secos...
- Também. Consegue chorar? Nunca mais, digo. Nunca mais.
- Você é um sádico.
- Um visionário. Juro. Bebemos um Porto?
- Brindamos a que?
- Ao próprio!
- Um para mim.
- O outro, para você também.
- Tim-tim.
- Vida longa aos parvos...
- Que o pouco que tive já foi comprido demais.
- Cale-se. As paredes têm ouvidos, não deixe que escutem seu discurso de animal ferido.
- Por quem você sente?
- Que disse?
- Por que você mente?
- Você quer ouvir. E acreditar.
- Quiçá um sonho?
- Agora, não. De manhã, haverá sido. Cansada?
- De forma alguma.
- Pois então, deixo-a sozinha.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Atento às tuas palavras, quero ler-te
És como um devaneio, sempre incerto
Quando julgo a resposta oculta perto
Desdenhas-me em cruel jogo solerte

Não posso recusar o desafio
Se a falta de promessas nos liberta
E embora eu devesse estar alerta
São vãos todos os truques que desfio

No entanto, não sou tola como crês
Teu habitual disfarce não me fere
Pois se alma desconheço, resta a pele

A disputa há de ser nosso revés
Mas esquece a soberba, que te beijo
Pela trégua – tão curta – do desejo

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Decifro-te, querido desafeto, em poucas linhas:
Bem sabes ser menos do que gostarias em suas grandiosas ambições, das máculas do passado, das  incertezas do presente, do temor absoluto do futuro. Contudo, não és tolo (enganaste, disfarçado de névoa, até mesmo a mim), escolheste o refúgio da dúvida, melhor que os outros questionem - "O que queres? O que pensas? O que vales? - e, perdendo-se na surpresa de um sorriso, do teu timbre suave, das pequenas amostras das tuas (?) ideias, acabem por superestimar-te. E pensar que quase me devorou, a tua Esfinge!