sábado, 25 de setembro de 2010

              O céu é cinza-violeta manchado de ocre por um sol que grita atrás das nuvens, sufocado. Do lado de cá, a atmosfera pesa. Todo o centro cheira a tempestade e pastel. Ah! O zunzum da cidade ao cair da tarde: Jovens ambiciosos usando ternos baratos, senhoras muito religiosas pregando no ponto de ônibus, prostitutas que pisam firme na calçada traiçoeira e movem os quadris com agilidade. Zunzum abafado por Chico Buarque no meu MPmuito. Tragicomédia com exímio elenco de bailarinos desajeitados. Perdoem-me o excesso (difícil descrever o previsível sem que o leitor se enfastie), mas o óbvio redesenhado pelo presente e pelo futuro perde os traços de um passado distante, e tenho de procurar algo que torne o momento algo mais que a ansiedade da calmaria.
            Volto-me para meus planos, a fila que não se move é uma dádiva para minha sede criativa. Não imagino um novo poema, mas aquilo que realmente há de mudar minha existência: Juntar um dinheiro aqui e ali, uma viagem - que triste é a vida com os cobres contados. Ainda bem que existem os pequenos amores que nos distraem - será que ligo para o Eduardo, chamo-o para um jantar e dê no que der? Alguém me cutuca: A fila andou (penso bem: Andou mesmo). A ilusão de cinco passos é desmanchada por um problema no caixa. Olho para fora. Vai mesmo chover. E eu precisava passar no mercado. Que Helena não apareça em minha casa hoje. Como voltar às minhas afronesias belíssimas ante a minha realidade ainda mais imbecil?
            A catedral do outro lado da praça me faz notar que continuo na mesma Cidade Sorriso bipolar de sempre. Enquanto amaldiçoo o agora, chega à frente da igreja, tímida em seus andrajos, uma senhora franzina. Volta o rosto para cima. Como eu, sabe que vem água. Procura um lugar mais coberto, mas cada toldo já possui “dono”. Que lhe resta? Carrega alguns papelões. Anda em círculos como um cão que estuda o território. Para. Uma idéia genial. Genial! A alguns metros dali, uma lata de lixo. Estica seu paupérrimo leito parcialmente sob ela. Quando o céu desabar, sua cabeça permanecerá quase seca.
            Pago minhas contas. Caminho rapidamente. Passo pela mendiga. Pingos esparsos e grossos caem. Batem no metal, ressoam. Molham os farrapos que recobrem a pele curtida. Cada vez mais constantes, as gotas. Geladas, impiedosas. Fujo, embora elas sejam minhas irmãs. Corro, corro e alcanço um táxi: Desperdício necessário. Não me volto para olhar. Sei que a velha continua lá. Dou o endereço para o motorista. Partimos, é claro. Ou você havia conjecturado outro final?

Um comentário:

  1. O cotidiano sempre rende bons textos, dependendo de quem escreve, e eu adorei o seu, mesmo.
    Aliás, não sei se você curte, mas eu indiquei você para três selos, vê lá no blog :D

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