sábado, 9 de outubro de 2010

Recópia de alucinações deliberadas

            Pergunto a qualquer amigo, a qualquer passante, como este gostaria de morrer. Primeiro, recebo uma expressão de horror, seguida de um comentário sobre o tempo, sobre a alma e demais tolices e, por fim, diante de certa insistência, ouço que meu interlocutor gostaria de morrer "bem velhinho, dormindo, de preferência, com o barulho do mar". Haja fraqueza. 
            Penso sobre o meu próprio fim em tais circunstâncias. Imagino uma senhora muito feia comentar com sua sobrinha que "morreu a vizinha, Dona Lucia, aquela senhorinha simpática, que estava sempre a preparar deliciosas broinhas de milho e erva-doce". Imagino meu cadáver de papel amassado, mais alvo do que o corpo jovem que possuo hoje, talvez pelos ralos cabelos brancos, ainda que a pele esteja salpicada de manchas, de carcinomas basocelulares e o diabo a quatro. Imagino minha irmã e meus sobrinhos a lamentar a perda por cerca de duas semanas, para depois seguirem suas vidas como se eu nunca houvesse existido - nada mais natural. E meus amores, estes também já estão há muito a sete palmos abaixo da terra. Desagrada-me a ideia de ninguém se lembrar de minhas pernas, agora inertes e judiadas por varizes horríveis. Desagrada-me mais ainda que, ao adquirir o que chama de experiência, eu tenha aprendido a resistir aos chamados mais lânguidos e, assim, lutado com toda a força de minha velha fragilidade, cheia de artroses contra o beijo sedutor e inexorável da morte. Apavoro-me ao pensar que esmoreceria não só a minha juventude, mas também as minhas palavras ácidas haveriam sido maturadas, adoçadas pela vida. 
            Como gostaria de morrer? Ora, não se pode fazer exigências por demais para um acontecimento assim. Se pudesse escolher, contudo, optaria por... Quem sabe, optaria por decidir, eu mesma, a hora da partida. Juntaria dinheiro apenas para gastá-lo. Não deixaria um tostão para ninguém: Não pretendo ter filhos, minha própria avó uma vez mencionou que, às crianças, deve-se ensinar apenas modos e amor à vida. Modos? Sei dizer “por gentileza e sorrir sem a mínima vontade, mas é somente pelos anos de experiência. Amor ao que quer que seja, bem, já caí doente por causa deste e, como acabou por tornar meu coração imprestável, não tive outra escolha senão a de jogá-lo fora. Sob tal ótica, colocar crianças no mundo seria um erro que não gostaria de me permitir. Voltando à partida: Talvez eu me vestisse com um Armani e me atirasse do décimo quinto andar de um hotel. Quem sabe, apenas esquecesse de acender o fogão quando fosse assar meu derradeiro bolo de chocolate, asfixiando-me com gás e deixando como única herança uma grande porção de massa crua.
            Penso em outra possibilidade: um assassinato. Não falo das balas perdidas ou dos homicídios causados pela resistência a um assalto na madrugada. Fantasio um crime em grande estilo, movido por razões políticas ou passionais. O motivo geral é simples: sou um perigo, sei demais, trapaceio demais, não posso mais existir. Deleito-me ao pensar que haveria, neste caso, infligido a ira de alguém ao ponto em que este se arriscaria a destruir a própria vida junto com a minha, que consideraria melhor os possíveis anos atrás das grades do que o meu respirar. Mil vezes ser odiada do que não despertar sentimento nenhum. Quem sabe, meu hipotético executor misturasse veneno para ratos à uma tacinha de Limoncello, considerando-se muito esperto, sem sonhar que desconfio de seu plano e que sorvo o licor com mais prazer desta forma. Será que ele me assistiria desfalecer enquanto ainda me sorria? Ou passaria por seus olhos uma sombra de terror? Quem sabe, ainda, eu fosse ferida por um tiro à queima-roupa, por algum incauto, inexperiente, que acertaria um órgão vital, porém de forma que eu tivesse alguns minutos para rir, esvaindo-me em sangue, e tresloucada perguntar: "Por quê? Por quê? Por quê?", ao que ele tentaria, cheio de cólera, me responder, mas ao encontrar meus olhos de desprezo, calaria-se para sempre, certo de que não havia necessidade de explicações. 
            Já partindo para o plano de utopia, a história de meu fim terminaria com meu corpo queimado embaixo de um viaduto ou atirado em um rio tão poluído que não seria possível encontrá-lo mesmo após buscas incansáveis (que provavelmente não aconteceriam). Se eu tivesse ainda mais sorte, meu querido desafeto estaria tão fora de si que cruelmente me picaria em pedaços e me jogaria fora, ou me espalharia por cantinhos na rua para assustar mendigos, ou talvez fritasse um pedacinho da minha coxa para comer no jantar acompanhado de um bom pinot noir - se assim fosse, não haveria o risco de que minhas ordens para que cremassem meus restos fossem ignoradas e que eu fosse vestida de rendas cor-de-salmão, pérolas e cabelos moldados com baby-liss, submetida à farsa de um velório, de lágrimas sem sal que não ardem nos olhos, e, por fim, enterrada para sempre como o cada bom inútil que dá seu último suspiro.

3 comentários:

  1. Olá Lucia,

    Você escreve muito bem...! Lendo o seu texto fiquei imaginando-me como gostaria de morrer, e descendo cada vez mais por suas linhas e "adjetivando" suas vírgulas pensei em morrer tomando uma garrafa de Limoncello com a sua companhia. Ahh sim adoro limocello, uma ex-namorada italiana sempre trazia pra mim umas garrafas quando chegava da Itália.

    Gostei do seu texto e de tantos outros que li!

    deculpa-me por querer morrer perto de você! Rs...

    beijos

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  2. Quase um De Profundis.
    Quem mais entenderia aspectos da morte? ou Morte.
    engraçado, nunca imaginei muito minha morte, talvez um gole precipitado, um "oi" para a pessoa errada, como se todas as pessoas não fossem erradas. Desejei tanto morrer que não me preocupei como, é de provocar riso.

    fico pensando em quanto tempo você demora para compor um texto assim(perdoe-me pelo plágio)

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  3. "Como gostaria de morrer? Ora, não se pode fazer exigências por demais para um acontecimento assim."
    Passei boas horas pensando nisso.
    Obtive uma resposta em forma de inspiraçao.
    Obrigada por compartilhar conosco seus maravilhosos escritos.
    Excelente!

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