quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Abrindo o Baú

 (Escrita antes de viajar, jamais enviada) 

  Curitiba, 23 de agosto de 2009

  Queridos Papai e Mamãe:


  Ignorem qualquer surpresa - o que lhes apresento aqui são, na realidade, os sentimentos de uma estranha. Tenho urgência de esclarecer, de uma vez por todas, que há muito já não me ligam a vocês o dinheiro ou as chantagens emocionais. Não sou ingrata, mas estou certa de que sei o que é melhor para mim, porque ao menos conheço minhas confusões. Vocês não podem predizer a mulher que serei - nem ao menos sabem a menina que fui!
  Cresci acreditando que o grande objetivo da minha existência era fazê-los felizes e isto significava - vocês nunca esconderam - ser a mais bonita, a mais inteligente, a mais educada da família, do clube, da escola e, se possível, do mundo. Não foi difícil durante a infância (todas as crianças são marionetes) e, quando me deparei com o impulso juvenil de abraçar o mundo com as pernas, questionar e transgredir, tive o cuidado de escondê-lo. Era a mais louca da turma do mal, mas às três estava em casa sóbria, no domingo usava vestidos, ajudava mamãe a fazer o almoço e passava a tarde estudando, lembram?
  Acusam-me de ser egoísta, só que não sabem (e nunca saberão), que, por solidariedade a vocês, chorei mortes sem que desconfiassem e acordei cedo para fazer compressas de camomila nos olhos. E quando voltei de viagem e papai me disse que eu estava "um planeta", recordam-se? Bastavam três quilos para que eu retornasse aos meus quarenta e sete de sempre, mas fiz melhor do que isto: dobrei a quantidade de cocaína e em duas semanas perdi seis (em um mês e meio, foram doze), vocês ficaram orgulhosíssimos e eu, um ano sem menstruar - mas que importa o detalhe?
  Entretanto, também é necessário elogiá-los: Aprendi bem cedo que não existe almoço grátis. Thanks to that, não consigo me sentir bem quando alguém segura meu braço com certa força na hora de atravessar uma rua - vai saber o que o desgraçado pedirá em troca -, prova irrefutável de que vocês conseguiram criar uma pessoa deveras independente, um feito digno de aplausos.
  Tirar nota dez em biologia e saber segurar minha flûte de champagne enquanto sorria cortesmente para todos os seus amigos (pais de família muito cavalheiros, que tentaram me levar para a cama inúmeras vezes) eram habilidades essenciais que adquiri com algum esforço, no entanto, pouco era o valor dos meus sonhos (não que eu tenha deixado de buscá-los, pelo contrário).
  Não pretendo fazer uma série de acusações, aliás, não faço aqui acusação alguma: Continuo violentamente existencialista e tenho a consciência de que todas as vezes que me atirei do precipício o fiz por que quis. Contudo, seguindo a mesma linha de raciocínio, sei também que escalei de volta à superfície sozinha, após ter me estatelado no chão. Sempre fui precoce, mas somente as irresponsabilidades que cometi puderam me fazer madura, e não suas ambíguas teorias.
  Uma história engraçada: No ponto mais conflituoso da minha adolescência, namorando o garoto que vocês julgavam adequado, pensei sobre o quão fácil seria ter a vida que vocês queriam para mim, tão habituada estava a pedir licença para ir à toalete, dar um telefonema e voltar com a expressão mais inocente possível. Afortunadamente, descobri que minha sede de liberdade não tolera frustrações bovaristas e tenho certeza de que preferiria morrer virgem, se virgem eu fosse, a somente pensar em dividir o mesmo teto que aquele bobalhão.
  É decepcionante pensar que, depois de passados dois terços do seu tempo na terra, ainda dêem tanto valor às aparências. A afirmação pode soar como uma inversão de papéis, mas me parece fútil demais o seu júbilo ao ouvir alguém dizer que sou linda e seu desgosto quando digo que vou cortar o cabelo. A beleza não é eterna, estática ou única, e tudo ao nosso redor é evidência disto.
  Recuso-me a ficar presa às suas ambições mesquinhas. Não importa se passei no vestibular, no concurso, meu desempenho no trabalho ou na faculdade: Quero mais do que saber, quero aprender, ensinar e construir. A contemplação não me satisfaz, o mundo é vasto e tenho muito a produzir.
  Poderia escrever páginas e páginas sobre o que almejo, mas só o que vocês precisam perceber é que não tenho mais a intenção de esquecer meus desejos em nome de... do que, mesmo?
  Não sou riquíssima, todavia não preciso de um centavo seu. Às vezes sinto-me só, mas prefiro a solidão às companhias que me destroem. Se vocês acertaram nas intenções (há controvérsias), erraram nas atitudes. Sou mais forte e poderosa do que demonstro. Amo vocês, só que não estou disposta a me sufocar por uma moral rasa e sem fundamentação, por ideais que não são meus e nem pela Família (assim mesmo, com letra maiúscula). Que eu quebre a cara para que o tempo os prove certos, mas agora é hora de partir por alguns meses.


  Lucia

5 comentários:

  1. sufocante.

    não sei dizer, sinto-me tão miserável.

    certamente o conflito familiar é inevitával para uma mente brilhante, e para uma mente brilhante, acho que "misticamente", o amor deve fluir sua perfeição - nada tem o amor com o perfeito, pois se é perfeito não seria mais amor, especialmente o dos pais.
    libertar-se, talvez, seja a escolha ideal, mas manter-se livre é um dever, maturidade é um rótulo estranho, e todo rótulo é, por ser indiferente à opinião, um vício.

    adorei estar aqui

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  2. A resposta do filho ao pai em Teoria do Medalhão.

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  3. Eu te amo! (eu já tinha alguma vez te dito isso? eu não sei... é sincero, e é pra parte da Lucia que eu conheço bem, é pra parte amiga e linda que me permitiram ver melhor esse ano!)
    Admiração cresce a cada dia mais...
    "you gonna go far girl, and i wanna be there with you!"

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  4. Muito interessante os seus textos! Obrigado pela sua visita no meu blog. Abraços!

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  5. uma relação de amor-repulsa com os familiares. tem um quê de Kafka e um muito de sinceridade, orginalidade e especialmente talento. parabéns!

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