quinta-feira, 26 de agosto de 2010

         Eutímico, porém notavelmente misantropo, era Professor. Difícil crer que ocupasse mesmo a função de mestre: Falava pouco e baixo, fazia críticas cáusticas em versos mudos e alternavam-se em seu semblante expressões muito sutis de vontade e de desprezo. Talvez pudesse explicar detalhadamente as leis da Física a seus entediados alunos, porém jamais poderia ser tomado como exemplo de homem valoroso.
        Ella, alva, jovem, ambiciosa, mas nunca tola, em tudo diferia de suas colegas que disfarçavam com seus rostos angelicais as coxas úmidas. Não tinha cabelos compridos, namoradinhos com acne ou tops de lycra. Pouco assistia à televisão. Vituperava qualquer tipo de alienação, todavia se permitia os prazeres do vinho, dos chocolates, dos cigarros, do sexo, dos livros. Tinha Pessoa na cama todas as noites já havia dois anos, e arrastava o amante em seu coração durante o dia inteiro. “Não sou nada; Nunca serei nada (...)”.
        Poderiam, Ella e Professor, ter se cruzado na saída de uma peça qualquer. Quem sabe, comprando café no Mercado Municipal. E não é improvável que se esbarrassem saindo de um filme de baixo orçamento em cartaz no shopping Crystal. Só que, em qualquer um destes casos, não haveriam percebido a presença um do outro.
        Se houvessem se conhecido em uma classe de Professor, Ella o detestaria: o julgaria pedante e desagradável. Mas conheceram-se, por coincidência, em uma sala de aula: Ambos alunos.
        Logo descobriram a escrita como um hábito em comum. Passaram a trocar prosa e poesia. Cedo, ficaram mais próximos do que julgaria adequado o restante da turma (um verdadeiro absurdo, ele, trinta anos na cara, ela, dezessete recém-completados).
       Discutiam acerca do comportamento humano em geral. Da loucura. Da gula, da ira, da soberba, da inveja, da avareza, da preguiça e, principalmente, da luxúria. Impassíveis falavam de desejo, mesmo inflamados por ele. Ella já notara os olhares de Professor e nada fizera para evitá-los (pelo contrário).
       Cada vez mais acalorados eram seus debates. Arte. Filosofia. Literatura. Sim, a boa leitura leva à reflexão e, não raro, à reflexão leva a relativização da moral, ocasionando pequenos “desvios”. Sim. Às vezes, o resultado do existencialismo consiste em corpos nus debaixo dum lençol. Se o pó retornava ao pó, pensaram, não havia tempo para reprimir a felicidade. E foi com a bênção de todos os filósofos e poetas que aqueles céticos se deitaram juntos pela primeira vez.
        Não fosse a fleuma dos dois transviados, quem sabe houvessem tentado levar alguns beijos para além do boudoir, contudo, parecendo-lhes insensato provocar escândalo, mantiveram uma amizade decorosa. Apenas sob o véu dum anoitecer lento, quando ninguém se ocuparia em procurar o paradeiro de dois improváveis amantes, era que se uniam as bocas e os vocábulos, os gemidos e os versos, as peles e as sinestesias, a excitação e a euforia criativa.
         “(...)Todos os sonhos do mundo”, era agora a linha preferida de Ella, quando parecia nascer o sonho da história sem fim. A história na qual cada vírgula era um suspiro, uma ausência lamentada e querida (sempre necessária para enganar as ampulhetas), cada interrogação, uma surpresa, uma palma fria sobre um seio quente, pernas entrelaçadas e dormentes de afeto. Todas as reticências, um prelúdio das exclamações de gozo...
         O ponto final, entretanto, fez-se necessário por um motivo banal. Ella arranjou um namorado, do qual não gostava muito, e nem o tempo todo. Estavam juntos há poucos meses quando ela decidiu que, embora, “amor” não fosse a palavra certa, algo a avisava que não era possível continuar com Professor. Talvez as convenções.
        Professor não chorou e não pediu que ela ficasse. Encontraram-se uma última vez. Ele falou que, se aquilo era uma despedida, era a mais bela de todas. “We’ll always have Babette”, disse, fazendo referência a Casablanca e ao cafezinho da Aliança Francesa. Ainda afirmou que sentia muito, e que prometia deixá-la cometer seus próprios erros, se assim Ella desejasse.
        Não cumpriu a promessa: Um dia, anos mais tarde, fez um telefonema internacional, para salvá-la de outra paixão desmedida.

4 comentários:

  1. Cara Lucia,
    Não encontro forma de te parabenizar que não com um constatação: engana-se quem acha que não se pode transcrever sentimentos em palavras. É utopia achar que a perfeição não existe no campo literário. Você quase a alcança!
    Vejo muito de mim em você, e é engraçado, mas tenho a nítida sensação de que nos conhecemos. Como pode?
    Parabéns, mais uma vez, senhorita!

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  2. Perfeito, cara, perfeito.
    Amei esse, é forte e sincero, uma baita reflexão sobre o encontro de dois "marginais", ou pelo menos foi essa a imagem que tive.

    Tu escreve muito bem mesmo, parabéns. Vou seguir o blog ;D

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  3. Ah, acasos do cotidiano? um pequeno conto divertidíssimo!
    a segunda vez que torno a este blog e fico inda mais maravilhado!

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  4. parece ser praticamente impossível não ficar boquiaberto e extasiado diante da engenhosidade literária sobre a qual seus textos são construídos.

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