quinta-feira, 11 de novembro de 2010

             Sabia bem que não se resumiam a dois corpos suarentos. Sabia? Como era bom perceber que ele nunca pudera perdoar-lhe o gênero (e duvidava muito que algum dia houvesse tentado), ao menos enquanto o arrebatamento era tanto que nada restava a não ser fitar a tatuagem feia em suas costas, seus braços firmes que se esticavam em direção à cabeceira buscando um cigarro. E pensar que tudo começara por causa de um isqueiro. E pensar que dissera jamais. Por que tão quieta?, ele perguntava constantemente, já procurando novamente enlaçá-la, forçando sua perna entre as dela, ansioso, ávido. Ainda bem. Dessa forma, atinha-se muito pouco a buscar respostas para o silêncio. Bastava que ele fosse suprimido por gemidos e suspiros. Não que não se importasse. Pelo contrário. Beijava-lhe as cicatrizes cuja história desconhecia. Vou cuidar de você, minha linda. Perdidos no limite entre realidade e fantasia, abraçavam-se.
            Quanto às discussões? Não existiam. Ele preferia dizer que respeitava a opinião dela. Nunca se enfrentaram. Não valia a pena. Ela vituperava suas atitudes de pequeno burguês, sua vida social repleta de presenças desprezíveis, sua falta de espírito público, rejeitava seus valores comuns, mas não se retesava ao toque do antigo inimigo. Ao invés disso, entregava-se, abria-se, pedia, prendia-o em si contraindo as coxas e gozava com raiva porque não era capaz de meramente usá-lo. Absorta pela satisfação culposa de quem perde o orgulho, caía no vazio da quietude com a qual ele fingia se incomodar. Tornava-se, pouco a pouco, parte das posses que ele considerava essenciais. E ele despejava mais vinho nas taças, mais risos suaves em seu ouvido, mais, mais, tantas coisas mais. Possuía-a na palma das mãos, nos olhos e no bolso da calça, embora nem ao menos a conhecesse.
            Pelas razões que só um homem assim poderia compreender, sentiu, depois de passados alguns meses, que era tempo de visitar uma joalheria. Fê-lo com a tranqüilidade de quem prevê um retorno certo ao investimento, mas, como qualquer um faria num momento como aquele, não se esqueceu de se ajoelhar, de se exaltar. E ela, como qualquer outra (veja bem, como qualquer outra) reagiria, disse que sim, os olhos úmidos de surpresa.
            Na manhã seguinte, encontraram-na morta, esparramada na diagonal da cama, branca como a ira (sim, a ira), nua como uma noite sem estrelas. No estômago, além de doses letais de Zoloft e Daforin, um anel de brilhantes da H. Stern.

7 comentários:

  1. Quando o percurso decorre no fio da navalha, mais tarde ou mais cedo cai-se para o lado de lá. E não há retorno.
    (Muito bom o seu conto!)

    beijo :)

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  2. Hey Lucia,

    Muito bom o seu conto, os adjetivos que usou foram redondos e expressivos e a ideia principal foi bem narrada. A vontade de ler subiu aos brilhos dos meu olhos e tive que ir até o fim. Muito bom mesmo

    beijos


    b

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  3. Guria, tu escreve pra caralho!
    Nossa, me deixou com vergonha, rs
    estou seguindo seu blog e seu twitter :)
    Besos!

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  4. a graça de todo clique são as palavras que florescem.

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  5. Enquanto lia me lembrei de um trecho do filme Closer, onde um personagem, não me recordo bem, talvez o médico, tenha dito que a mulher adora uma transa culpada. Sim, não foi o escritor.

    E... "(veja bem, como qualquer outra)", ótima essa parte!

    Essas coisas matam.

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  6. Tudo começara com um isqueiro; e então a chama - descontrolada.

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  7. Por isso odeio emprestar isqueiros, no fim das contas eles sempre desaparecem rsrs
    foi realmente empolgante ler teu texto
    e como o esperado, sempre o inesperado!

    hoje: sem desatendidos! uns abraços

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