sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Fragmento

Estranhíssimo: eu conseguia perdoá-la por ter um amante, meu pai também fora infiel no casamento e, mesmo que eu preferisse não saber de seus desvios, com medo da sensação de desamparo que eles me traziam, sabia que eles não haviam sido os primeiros e estavam longe de serem os últimos a romper com suas ditas obrigações maritais. Sabia também que a decisão de meu pai por uma separação era improvável, pois ele tinha exatamente tudo o que queria: uma mulher bela e facilmente dominável, cujos protestos podiam ser calados com jóias, e mais quatro ou cinco namoradinhas para distraírem-no com seus corpos jovens, risos graciosos e sua leviandade encantadora.
Era considerado um homem de bem, um bom profissional e ainda conseguia aparentar ter mais dinheiro do que efetivamente possuía. Já mamãe, sufocada por regras, tratada como uma criança incapaz ou como uma louca, pouco tinha a perder. Contudo, conhecendo-a como eu a conhecia, temia seu bovarismo ingênuo e onde ele culminaria: o último bem que lhe restava era a esperança, e eu desconfiava que, se esta morresse, ela também definharia.
Considerava injusta a peça que o destino pregara em ambos: Ele, por fazê-la acreditar que não passava de uma mulher delicada e eternamente romântica, sem discernimento da realidade, seria deixado por ela exatamente por isso. E ela, tardiamente sonhadora, incendiaria a vida imbecil que tivera sem saber como construir outra. Mimada como era, não tinha noção dos riscos que corria.
Era claro, portanto, que ela pagaria por seus erros, que estava fadada à decepção. O que eu não conseguia tolerar, mesmo, é que ela quisesse me arrastar junto para o lago de equívocos onde se afogava no raso – e que tivesse poder para isto, por mais idiota que fosse.
Pela primeira vez em muito tempo, pensei no futuro. Não consegui achar nenhuma promessa importante, nenhuma expectativa. Mas viver do meu jeito era um bom engano. Não queria ser como a minha mãe.

3 comentários:

  1. Bom desfecho, sintetiza toda mensagem do texto. Não tenho lido muitos textos de temática familiar ultimamente. O seu vem quebrar o ciclo.

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  2. Saga familiar, com os actores muito bem definidos no seu papel.
    Lucia, o final fez-me lembrar uns versos de José Régio: Não sei por onde vou / Sei que não vou por aí.
    Quanto à escrita, a mesma qualidade de sempre. É um prazer lê-la.

    Beijo :)

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