quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Conto Puro

            Era Ângela a filha de um homem que não existia mais, nem na memória – fruto de uma noite regada à cachaça em excesso. Recôndita e inexoravelmente má desde a ignorância animal dos recém-nascidos, ou talvez sábia demais, causou a morte prematura de sua mãe. Herdou, de sua pobre progenitora, uma agulha de crochê. Acolhida por sua tia Madame, mui cedo tornou-se mulher – da vida, sempre fora.
            Tinha alma para os negócios, mas nem tanto para as finanças. Descobriu que o maior prejuízo dos que perdiam a dignidade (porque a deixavam escapar e punham a culpa num viajante com a barba por fazer) era a carência. Supri-lo, portanto, encurtava o caminho para o poder e valia muito mais do que a lei do mais forte. Percebeu que um ombro onde outros poderiam chorar era moeda de troca valiosíssima, e Ângela dispunha o seu às colegas como dispunha o resto do corpo a seus clientes.
            Sendo confidente de todas as mocinhas pouco virtuosas que com ela labutavam, não se surpreendeu quando Anne Louise – belíssima e imbecilíssima – confessou-lhe que esperava uma criança. A bem da verdade, não esperava: desesperava-se por livrar-se dela. Fleumática como de costume, Ângela resolveu o problema com muito prazer e sem nenhuma agressividade no manejo de sua única herança, embora Anne tenha sido acometida por uma febre que quase a levou ao túmulo dias mais tarde (mas antes a morte, mil vezes a morte!). Não lhe cobrou muito: meio vidro de um perfume falsificado pareceu-lhe suficiente. O pagamento foi simbólico: A jovem prostituta, na verdade, sentira-se pela primeira vez útil – arrancara das entranhas da outra uma erva daninha.
            Tão logo se espalhou a notícia (Lou não se pôde conter), novos pedidos desesperados surgiram. Solícita como lhe mandava a criação, Ângela atendia a todos, sempre grata pela oportunidade de cortar o mal pela raiz.
            Nem a sua fama de cirurgiã, todavia, poderia livrar-lhe de vender-se – e nem interessava a ela desistir da profissão que sempre exercera com muito gosto. Assim, em uma madrugada de gim nacional e corpetes de cetim, conheceu a sua desgraça. Não se deitou com ele naquele instante – estava ocupada – mas ao pousar o olhar na expressão mordaz e no corpo magro do cavalheiro, tomou-a uma euforia maior do que a causada pelo excesso da bebida ao qual já estava acostumada e, a despeito da loucura, sentiu-se distante do seu mundo de fantasia – alguma urgência desconhecida e real demais adensava-se dentro dela. Desejo, sim, mas não só desejo. Subia ao patíbulo, mas não foi capaz de notá-lo.
            Foi num entardecer cinza-claro que tornou a encontrar seu bem-amado – ele havia retornado àquele antro somente por ela. Do crepúsculo à aurora, nada fizeram além de, e exauridos de paixão, adormeceram abraçados enquanto os honestos acordavam.
Ângela despertou com um movimento inesperado de seu homem no sono. Contudo, toda a mágica da noite anterior desapareceu quando suas pálpebras se levantaram: Não encontrou no rosto dele as feições cruéis da primeira vez que o viu, mas os traços brandos de um menino adormecido. Aterrorizada pela visão daquilo que sempre lhe causara ojeriza, não hesitou ao alcançar sua preciosa agulha e enterrá-la no pescoço do amante, que tremeu e sangrou e arfou sem conseguir comovê-la até, finalmente, cair inerte – desta vez para sempre. Serena, sereníssima, ela dirigiu-se à janela. Caiu muda e morreu com três vigas de madeiras que lhe atravessaram o ventre, o semblante satisfeito de quem nem ao menos sentiu vertigens.

7 comentários:

  1. Um conto (des)natal(izado).

    beijo :)

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  2. Oi!
    Vi que me deixou algumas palavras tuas em meu espaço.

    Aproveitei e vim até aqui saber do que escreve.

    E eu, gosto muito.

    Sempre passarei aqui.^^

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  3. Espremendo cruelmente os limões da realidade sobre as teclas...

    Gostei.

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  4. Adorei o conto! Você escreve muito bem! =D

    Até.

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  5. Enquanto os honestos acordavam... gostei disso.
    Um conto bem feito. Té mais.

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  6. Inebriante conto, gostei mesmo.
    Eu indiquei você a mais alguns selos, veja lá na página do meu blog :]

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  7. Ai que me apaixonei por essa puta!
    ADOREI o conto, e o desfecho foi ótimo!

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